Na rua é tudo tão complicado. Pra domir, o de sempre. Cobertor que ganhei de meu tio Mané, em 2001. Herança, por assim dizer. Eu devia ter uns 13 anos. Já perdi as contas. Não vejo muito futuro na minha frente. Não sou o bacana que pensa em aplicar em fundos de investimento e levar a vida com a aposentadoria aos 60 anos. Eu não faço idéia do que significa investir. Mas tava na capa do jornal algo sobre isso. Leio sempre na banca a maravilha do mundo em que não participo. Meu tio Mané sempre se revoltava: "Covardes", ele dizia puto da vida. E ainda terminava "Neco, a gente é pobre, miserável, você sabe disso. Mas vou te contar, tem dias que, mesmo na rua, não me sinto mais solitário do que era quando tinha uma vida média".
Nunca entendi direito as coisas que ele dizia. Morreu no frio. Mas não de frio. Acho que era novembro, o shopping Light já estava com iluminação de natal. Terça-feira o pessoal daquela Kombi vinha dar sopa perto do escadão do Viaduto do Chá. Lembro como se fosse um sonho estranho. Dessa vez vieram com eles um pessoal diferente com uma câmera, uns seis deles. Um povo assustado, nem desceram da Kombi, sequer abriram a porta. Seu Nelson veio conversar com a gente. Disse que eram de uma faculdade, estudavam jornalismo, estavam fazendo uma reportagem sobre a distribuição de comida nas ruas.
De longe, e com a normal cara de insatisfeito, Mané ouvia tudo. A palavra "câmera", para ele era um trauma, dizia. Eram todos uns mentirosos, falsos, hipócritas. Naquela época eu nem imaginava o que era ser hipócrita. Anos depois fiquei sabendo que meu tio apareceu uma vez na televisão, quando foi espancado por um bando de bacanas em uma travessa da Paulista, três ou quatro anos antes de morrer. Os boys foram soltos, ele não recebeu nem médico. Apareceu ao vivo, todo arrebentado em pleno meio-dia. Foi tido como derrotado pela galera do Anhangabaú.
- Mas eles não vão falar nada comigo não, disse meu tio.
- Po, Mané, calma, eles são gente fina, vieram na boa, estão com a gente.
- É o cacete, vamo ver se alguém desce com câmera aqui, disse já gritando e apontando para a Van, poucos metros à frente.
- Tá bom, deixa pra lá, eu falo com eles, seu Nelson finalizava a idéia.
De dentro do carro, Maurinho, do terceiro ano, provavelmente ouvia Mané dizendo tudo. Esse moleque era maluco. Depois fiquei sabendo, o maluco era lá do Brooklyn. Mas da parte boa, sabe. Abriu a porta e fingia estar apenas ajeitando a câmera, mas todo mundo já tinha visto a luz vermelha acesa. Mané apontava de longe e ainda dava pra ouvir os gritos dos outros. "Fecha a porta, Mau, que merda!".
Meu tio correu em disparda pra cima do moleque. Tirou a câmera da mão dele, afastou todo mundo. Deitou o fulano no chão e distribuiu. Jogou a câmera com força umas 3 vezes na cara, o garotão ensanguentado, já tinha parado de reagir há um bom tempo. Os gêmeos, que estavam segurando o pessoal da sopa, soltaram, apavorados. Seguraram os braços de meu tio, que chorava e tremia muito, não se sabe o porquê.
Mané voltou a correr quando uma viatura parou em cima do viaduto e viu a confusão. Os policiais desciam a milhão os degraus, pulando lances de escada, pareciam uns animais caçando uma presa. Só os mais velhos ficaram no local e ainda assim, foram agredidos até Seu Nelson dizer que eles não tinham nada a ver e comentar sobre meu tio. Eu, que já tinha corrido, fingia dormir do lado oposto de onde estava o tumulto, mas conseguia ver tudo.
Outra vez os policiais farejaram sua caça e foram atrás. O camburão deu a volta e fechou a rua na frente do terminal bandeira. Alguns dizem ter visto meu tio com algemas, outros dizem que ele apanhou como um cão e havia tomado um tiro nas costas. bem que eu havia ouvido uns disparos no dia. A única certeza que tive ao acordar no outro dia de manhã foi a de que jamais veria meu tio novamente. Mas algo dele parece ainda estar em mim. Talvez o espírito de lutar pelo que temos, mesmo sem termos nada, é o que me faz sobreviver dia após dia, sozinho, no inferno do centro de São Paulo.
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