"E eu seria então o mano mais firmeza da quebrada, só por você..."
Xis
São quatro e trinta e cinco da manhã. Meus olhos quase não conseguem abrir, mas ninguém me mandou ficar acordado até tarde. Com aquele monte de policial na rua não dava pra dormir direito. Certeza que subiam a Principal na captura de alguém. O problema era a gritaria dentro dos becos, os avisos e o silêncio que se fazia quando se ouvia vozes de PMs. Fiquei da laje vendo tudo, enquanto Aninha, minha esposa, já na cama, reclamava.
E agora essa, tudo bem, vou acordar. Naquele momento, desligar o despertador parece a tarefa mais árdua do mundo, mas quando chega a hora do rush a gente esquece disso e percebe que tem coisa pior para enfrentar.
Finalmente consigo me sentar na cama. No disco que coloco no rádio, um Herbert Viana mais jovem e esperançoso canta: "Da cama pro banho, do banho pra sala, o sono persiste, o sol já não tarda, a vida insiste em seguir um velho ritual que sempre segue a tantos outros, o mesmo pão comido aos poucos", quando ouço esse trecho escovando os dentes e me olhando no espelho, pergunto a mim mesmo se o pessoal da rádio pensa nessas coisas.
São cinco e dois da manhã quando coloco os dois pés para fora de casa e desço a Principal, para pegar o primeiro ônibus da viagem. Nesta caminhada passo por algumas marcas de pneu no asfalto e lembro da polícia do dia anterior. Até que hora teriam ficado infernizando? Mão no bolso e sigo em frente.
Mais lá embaixo, vejo a fila quase vazia de ônibus e três garotos esperando o ônibus sentido bairro, dormindo cobertos com suas próprias blusas com marcas de skate que até hoje, vergonhosamente desconheço. Eles entram em um carro, talvez o primeiro do dia para aqueles lados. Eu continuo de pé, na fila.
- Moço, que horas são, por favor? - Me pergunta uma senhora de óculos e voz doce.
- Cinco e quarenta, senhora.
- Obrigado, viu. Tá uma demora esses ônibus, né?
É lei. Se você informar a hora para uma tiazinha e vocês estiverem em filas, salas de espera ou dentro de elevadores, ela vai emendar alguma conversa. Dando um pouco mais de corda, descobri que a senhora estava indo ao médico e pretendia chegar bem cedo. Disse sobre suas filhas, seus netos, mostrou fotos. Fui conversando com ela até o Hospital do Servidor Público, no final da Ibirapuera. Depois disso sentou um fulano que dormiu até às seis e cinquenta, quando chegamos no ponto final. Tive que acordar o cara. Isso, depois de ser acordado por outro que do banco de trás me deu dois tapinhas nas costas, indicando o ponto de chegada.
Desço a Praça da Sé tranquilamente, ainda me dá tempo de parar no boteco do Barba para tomar um café, comprar um maço de cigarros, trocar duas palavras sobre a quebra da invencibilidade do Corinthians na Série B. Chego no prédio dez minutos antes de meu horário. Faço uma brincadeira com Dona Ana, secretária, e vou para a sala.
O dia passa seco. Almoço no Barba, pra variar. Na quarta-feira ele faz a melhor feijuca do centro de São Paulo. Relatórios, arquivos, faço de tudo nessa empresa. Tenho até dois cargos, mas, óbvio, como em qualquer organização de cunho capitalista, recebo apenas por um deles. Já são quatro e vinte e daqui a pouco volto para o ponto que me entregou aqui pouco depois do sol nascer.
Acho que não existe nada mais contrastante do que ver o pôr-do-sol de cima do viaduto do chá. É uma cena lindíssima, gostaria que alguém fotografasse um dia. Ao mesmo tempo em que correm contra a morte os meninos com o saco de cola na mão e as meninas que limpam vidros de carro atrás de trocados.
Apertei um pouco o passo, cheguei no terminal Às seis da tarde.A fila já ganhava proporções que poucos podem imaginar. Duas, três filas de espera. Os ônibus chegam, lotam e saem. As filas só aumentam. As tiazinhas pensam no absurdo que é pegar um ônibus, várias pessoas conversam e sorriem, como se aquilo fosse bonito, ou realmente engraçado. Estranho jeito de levar a vida esse tipo de gente, eu acho. Não consegue entrar no ônibus porque está muito lotado, sorri. É maltratado pela balconista do banco, sorri. Vai entender.
Dessa vez, talvez pelo horário, não consigo lugar para sentar. Vou ao lado da porta, entre a escada de saída e o corredor. Ali é tranquilo. É impressionante como todos os dias eu acho que venho no coleitov mais lotado da cidade. Cada dia um pior. O sistema de transporte da cidade é ridículo, milhares de pessoas e três linhas para o mesmo lugar. Um celular toca funk enquanto dois caras conversam sobre alguma garota em comum.
Nesta hora, pensei na conspiração que rege o mundo: Ou estou sendo muito zoado por alguém que criou essa merda toda, ou é tudo verdade e as pessoas são realmente vazias. Esqueço isso quando vejo uma morena caminhar em plena Avenida santo amaro, com uma saia de seda e um decote que faria qualquer ser humano ter o mais primitivo dos desejos carnais. Dei risada quando lembrei que também sou vazio.
Desço no final, pego outro coletivo ou pouco mais cheio, talvez por ser menor. Pelo menos chego em casa rápido. Vejo a bolsa de Aninha jogada no sofá e imagino que acabou de chegar. Ouço o fogão ligado e a televisão da sala na novela das sete e minha linda mulher assitindo entre a cozinha e a sala. Ela não é a Julia Roberts, mas nem se fosse eu a amaria tanto.
Ainda um pouco suado - não do trabalho, da condução - chego ao seu lado e lhe dou um beijo no rosto, um abraço. Ela pergunta o que eu tenho. Respondo: amor. E ela ri, caminhando para a cozinha e terminando nossa comida. Também dou risada, nem eu mesmo acredito em mim. Mas acho que, sem o amor, nada destes dias tensos e dessa correria maluca por sobrevivência, iria funcionar muito bem.
Neste momento olho para o relógio que marca vinte e três e quarenta e oito. Minha princesa dorme e eu tenho algumas horas de sono para esquecer um pouco toda essa polícia, essa condução, esse capitalismo e essa gente doida - incluindo eu mesmo - do mundo em que vivo. Poucas coisas na vida conseguem dizer "Eu te amo" com tanta propriedade como ver sua garota dormindo ao seu lado. É tanta responsabilidade, tanta mente em parafuso, tanta maluquice, relatório, intriga, briga, desigualdade, maldade e tortura social que às vezes esquecemos de sentir uma simples saudade.
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