Paranóia Passional

por Robson Assis | | 17.7.08

"É bem mais fácil falar da dor.
É bem mais fácil que falar do amor.
Dá mais ibope, chama atenção pros parceiros, pro mundão, né não?"
Genival Oliveira Gonçalves, GOG

Helena estava cansada. Não suportava mais aquelas homenagens que recebia na igreja da Graça Celestial, que freqüentava no Jd. Monte Azul. Seu casamento era, deveras, o mais duradouro de todas as jovens do local, ela sabia disso, não eram necessários os semestrais buquês de rosa e as declarações de amigos e conhecidos ao final do culto. No próximo mês, seria aniversário dos dois, ela não queria nem imaginar.

Mas dessa vez, Jucilene, amiga do casal, falara tão a fundo sobre o relacionamento que fez Helena suspeitar. Ao sair do culto agradeceu a todos e viu de longe o cochicho de seu marido Carlinhos com a amiga. A adrenalina de poder enxergar os dois sem ser vista lhe fez saltar os olhos para um bilhete que Jucilene deixara no bolso de seu marido.

No caminho a pé entre as subidas e descidas de terra do bairro, o casal falava sobre como era bom estar juntos por tanto tempo e serem felicitados assim sempre. E Helena dizia tudo de maneira tão jocosa, que desta vez quem desconfiou foi Carlinhos, mas ainda assim não queria perder tempo e seguiu até em casa sem questionar.

Ao chegar, Helena o colocou contra a parede. Ele, receoso, viu a garota tirar botão por botão de sua camisa ao mesmo tempo que mordia a língua.

- Agora não, Leninha.
- Mas hoje a gente tem que comemorar, retruca a moça.
- To muito cansado, querida, depois a gente vê isso melhor.

Claro que jamais desconfiou da esperteza da garota com quem se casou. Era uma menina simples demais para bolar planos mirabolantes. Helena o viu colocar as roupas no canto do quarto, como de praxe, e entrar no banheiro resmungando algo. Correu para o quarto e apanhou o bilhete no bolso do rapaz. Um papel amassado e dobrado quatro vezes dizia:

“Carlinhos, é muito perigoso fazer o que fizemos no meio do culto. Se a Helena perceber vai melar tudo. Amanhã passo no seu trabalho às 18h30. Lá conversamos melhor. Ju.”

Fez questão de guardar o bilhete do jeito que encontrou. Finalmente, viu que não era apenas ela que estava cansada de seu relacionamento. E então as horas extras que ele dizia ter acumulado e nunca recebido começaram a fazer sentido, assim como as noites de sábado em que dizia estar no inventário. A traição de seu marido começava a se desenhar, bem na sua frente.

Naquela noite, não dormiu, o sangue fervilhava vingança. Havia esquecido todas as bençãos, todos os trechos bíblicos que fazia questão de decorar, queria apenas mudar de vida e sabia que não era nada difícil. Já havia imaginado os dois no local em que teve seus primeiros pecados da carne, o banheiro de deficientes inutilizado pela igreja. Outra vez o sangue parecia explodir de ódio.

Carlinhos acordou, saiu às 5h20 da madrugada de sexta, era sua rotina. Era o dia de pagar as contas, levou o dinheiro que sempre guardava nos cantos escondidos de sua casa. No caminho encontrou o bando que mais assustava os moradores da região. Julinho, Neca, Alemão e o pior deles, Garrincha. Esse último, parou e desceu do carro, encarando nosso personagem. Aos berros trocava com Carlinhos:

- Ce ta me tirando, doidão? Diz o furioso.
- Não, cla-claro que não, eu não fiz nada, responde Carlinhos temeroso pelo dinheiro que portava.
- Ah, e eu sou bobo então, sou bobo né.. Isso que ce ta me dizendo?
- Mas o que foi? Eu não fiz nada absolutame..
- To te zuando, mermão - dizia o malandro já rindo da cara do outro com seus parceiros – Vamo ali tomar uma breja pra finalizar essa noite, vamo!
- Não, que isso, preciso trabalhar ainda, mas valeu.
- Porra, to falando pra vir com a gente, maluco!

Após ver a arma na cintura de Garrincha e o estado ora tranqüilo, ora caótico do malandro, decidiu ir com eles e inventar qualquer desculpa para o atraso.

No boteco do Jé, tomou algumas doses de cachaça barata e saiu tropeçando na cadeira em que estava. Garrincha e Alemão, cumprimentaram o rapaz que às 6h30 partia sentido centro.

- Ele gelou, mano, mancada – Diz Alemão.
- Mancada? Mancada é trabalhar pros outro. Um dia zicado abre os olhos da gente.

E todos na mesa riram fervorosamente ao ver Carlinhos tropeçar outra vez na guia em frente ao bar.

Como há muito não bebia por conta de sua religião, Carlinhos percebeu a merda que tinha acabado de fazer. Completamente bêbado, sentou no final do escadão e chorou. Precisava contar a Helena sobre seu plano com Jucilene, precisava pedir demissão. Mesmo se passasse fome, se sentiria mais vivo. Havia, então, tomado uma decisão. Queria viver.

Helena acordara às 7 e meia com um ar estranho entre a angústia e a sede de vingança, desceu à padaria. No caminho, ao passar pelo bar do Jé, viu malandros assobiando, bêbados, dizendo palavras chulas em relação à ela. Virou a cara e neste segundo, enquanto olhava para o outro lado, pela primeira vez se permitiu olhar de volta os fulanos que bebiam de maneira incessante. “Chega aí, morena, tem um lugar aqui pra você”, grita Alemão.

Ela dá outros três passos e volta ao bar.

Entra, finge não ver os rapazes na mesa, que a olham como Lobos que cercam uma presa. Compra um maço de cigarros, fato este que não fazia desde os 17 anos, quando era uma garota rebelde, e pergunta ao Jé se tem fósforos. “Mas ela não é aquela mina da igreja?” se perguntam aos cochichos os quatro malandros. Quando Jé se vira para pegar os fósforos:

- Aqui, morena, pode acender aqui – Alemão estende o braço com o isqueiro para a moça.

Ela acende. Olha para os rapazes durantes três segundos e solta os cabelos. Os quatro se sentem num filme em câmera lenta. Ela se senta, olha para os rostos apavorados dos boquiabertos malandros. Se serve de um copo de cerveja.

- E então? Pergunta a garota enquanto dá seu primeiro gole.

Nenhum daqueles jamais havia visto aquilo. Afinal, eles infernizam a vida de milhares de garotas do bairro. Nenhuma delas, a não ser as mais conhecidas e atiradas, nunca ousou virar o rosto, olhar para eles. E a que menos esperavam, a crente, como chamavam, se voltou, sentou à mesa e pegou uma cerveja. Após três vezes perguntando para si mesmo se estava bêbado demais, Garrincha despertou:

- É, morena, ce é gata demais. Qual é a sua graça, meu bem?
- A que você quiser, responde uma Helena quase inconcebível de sensualidade.

Carlinhos acabara de acordar na guia. Não sabe como havia dormido, nem como tinha parado ali. Olhou para os lados e notou o desprezo das pessoas no ponto de ônibus, como se fossem testemunhas vivas da degradação da pior das espécies. Procurou sua bolsa e não encontrou. Só então percebeu no que havia se metido. Levaram seu dinheiro e o que restava de sua moral. Ele decidiu ir pra casa, encontrar sua mulher, dizer que queria outra vida, em outro lugar e assim falar sobre seu segredo com Jucilene.

Andou com a cabeça fervendo até chegar na rua de sua casa. Pensava em seu trabalho, nas desculpas que teria de arrumar, na reação de sua esposa para o que iria lhe oeferecer. Abriu a porta de casa e deu de cara com Alemão fumando um cigarro no sofá. Não entendeu nada. “Como o filho da puta sabe onde eu moro?”, o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça.

Olhando surpreso e calado para o malandro, Carlinhos recobra os pensamentos e começa ouvir barulhos parecidos com sexo. Antes de pensar em Helena, vê sair de seu quarto Garrincha puxando o zíper das calças e, antes que ele fechasse a porta, nosso personagem tem a visão certa do inferno: Julinho e Neca sobre sua mulher, em movimentos bruscos e posições que jamais imaginara.

Caiu de ombros como um derrotado. Não pensou em Helena, ou em qualquer um dos quatro malandros que invadiram sua casa. Temos agora outro personagem em busca de vingança. Garrincha tentou entrar no quarto para avisar os três na cama, mas era tarde demais. Carlinhos já havia se levantado e não pensou duas vezes quando viu a arma em cima da mesa: “Porra!” Deu um grito que assustou Dona Maria, vizinha da casa, que ao mesmo tempo parou de lavar a louça para ouvir o alvoroço.

Saía então do quarto uma Helena de cabelos bagunçados, camisola amassada e maquiagem estragada, mesmo àquela hora da manhã. Carlinhos jamais ousou imaginar a cena. Os outros dois, medrosos, vestiam rápido suas roupas, podia se ver na fresta da porta entreaberta.

- Helena, o que você está fazendo? Diz Carlinhos desesperado.
- Diz você, o que você tem feito com a vaca da Jucilene no meio do culto?

Arregalou os olhos. Como será que sua esposa descobrira o tal segredo dos dois? Mesmo assim abriu um sorriso desesperançoso por imaginar o que ela estava pensando.

- O que você sabe?
- Sei que ela anda te mandando uns bilhetinhos. Que vocês fazem coisas escondidas no meio do culto. No meio do culto, Carlos?
- Ela trabalha numa imobiliária, você sabia disso?
- Dane-se, e eu quero lá saber onde essa piranha trabalha? Retruca Helena.
- Chega! Carlinhos interrompe com um grito como da primeira vez.

Carlinhos estava mais cansado do que com raiva. Em uma manhã que seria comum, teve sua vida toda despedaçada. Agora estava apenas nervoso e cansado. Então alinhou os malandros ao lado de sua esposa. A arma que tinha nas mãos era a única dos quatro. Pensou bastante antes de tomar a decisão e deu o primeiro e único tiro da história. Em sua própria cabeça.

Os malandros saíram em disparada, afinal, quem acreditaria na versão deles? Além disso, Neca era foragido da polícia. No último Dia das Mães deixou o presídio em que estava e não voltou mais. Correram sem perceber Dona Maria que da janela ouviu o disparo e se abaixou, mas ainda conseguiu ver os quatro em disparada e ligar rapidamente para a polícia.

Helena, em estado deplorável, gritava de horror pela cena que presenciara. Ao lado de seu marido ensanguentado, leva às mãos a arma que o matou e faz o mesmo. Não conseguiria explicar nem a si mesma o que havia feito nesta manhã. A polícia chega e encontra os dois corpos sobrepostos. Dona Maria não consegue explicar nada aos oficiais.

O dia inteiro se passa, os dois vão ao IML, amigos da igreja preparam o velório, mas não conseguem falar com Jucilene, que às 18h45 espera Carlinhos e não entende nada por ele não aparecer. Pergunta na portaria, descobre que o amigo havia faltado no trabalho. Deixou um recado ao porteiro do prédio, para ser entregue ao amigo junto a um documento:

"Carlinhos, a casa nova está pronta! Como não sei quando vou te ver novamente, na semana que vem, na data do aniversário de vocês, eu entrego a chave. Este documento do envelope é a escritura. Achei que gostaria de ver. A Helena ainda nem desconfia de nada! Ela quase nos viu ontem, mas sem dúvida a hora que souber da casa nova vai ficar muito feliz! Beijos, Ju."

O envelope nunca saiu da gaveta do porteiro.

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