Em direção ao ponto de ônibus algo lhe aconteceu. Sentiu o sono apertar e o chão amolecer sob seus pés. Caminhou mais rápido até o coletivo que já o esperava, sentou-se. Era o 175 rumo a Lapa, pensou em alguns minutos em pegar O Oscar Wilde que lia, mas talvez adormecesse sem perceber e deixasse o livro cair. Pensou outras possibilidades mais confusas e decidiu ler na volta do trabalho, se lhe fosse conveniente.
Conversou qualquer bobagem com o cobrador. Tinham uma cumplicidade desmedida, eram amigos sem o ser. A última rodada do campeonato estadual de futebol, o caso daqueles meninos brutalmente assassinados. Ao mesmo tempo que seus assuntos eram mutáveis e rasos, a relação era discreta e para ambos agradável.
Viu uma mulher com bebê de colo, um garoto com roupas velhas e cabelo arrumado passando por baixo da catraca. Dormiu um sono inocente, involuntário e sem pretensões. Foi acordado pelo cobrador. Levantou sem pensar e rosnou ao quase amigo quando viu que havia passado seu ponto. Não sabia onde estava. Ligou pro trabalho, o telefone não existia ou estava fora da área de cobertura. A operadora sempre exterminava os números, quando se precisava deles. Entrou num prédio qualquer sem saber porque. Tinha a chave, o acesso fora sutil ao receber um bom dia do porteiro. O botão do elevador lhe pareceu intuitivo quando apertou o oitavo andar.
Não sabia o que estava fazendo. Tinha que sair dali, tinha que ir trabalhar, "porra, uma falta" foi a primeira frase que lhe veio à cabeça. Mas não sabia o que estava fazendo, por onde estava andando, como aquela chave do portão havia parado em sua mão. O elevador parou no sexto. Uma garota entra e o cumprimenta com um nome que ele não entende. Saia em tom rubro chocante, jeito descuidado e chiclete sem sabor quase em denúncia de sua falta de pudores. "Tá subindo?", diz a pequena, com um olhar que agora a denunciava completamente. "Sim, mas só mais dois". "Ah, então vou com você... Eles tão em casa?". A primeira pergunta mental foi "quem, porra, quem? Onde diabos estou indo?", mas só lhe respondeu não saber.
Outra vez, ao sair do elevador, estranhou já conhecer o caminho do lugar que não conhecia. Foram pelo corredor, parou em frente ao 86. Um momento de dúvida lhe disse que não devia estar ali. Olhou para sua quase conhecida, depois para as chaves em sua mão. Cutucou a mochila, ainda estava lá. Não era tão mal assim, aquele ainda era mesmo ele. Sorriu para a garota que o olhou intrigada e se dispôs a retrucar "vamos, pára de brincar" e o empurrou para o apartamento 88, do outro lado do corredor.
As chaves entraram e o estalo da fechadura o fez assustar num pulo do banco: "seu trampo já é no próximo, mano" o cobrador o acordava dentro do ônibus.
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