Na rua é tudo tão complicado. Pra domir, o de sempre. Cobertor que ganhei de meu tio Mané, em 2001. Herança, por assim dizer. Eu devia ter uns 13 anos. Já perdi as contas. Não vejo muito futuro na minha frente. Não sou o bacana que pensa em aplicar em fundos de investimento e levar a vida com a aposentadoria aos 60 anos. Eu não faço idéia do que significa investir. Mas tava na capa do jornal algo sobre isso. Leio sempre na banca a maravilha do mundo em que não participo. Meu tio Mané sempre se revoltava: "Covardes", ele dizia puto da vida. E ainda terminava "Neco, a gente é pobre, miserável, você sabe disso. Mas vou te contar, tem dias que, mesmo na rua, não me sinto mais solitário do que era quando tinha uma vida média".
Nunca entendi direito as coisas que ele dizia. Morreu no frio. Mas não de frio. Acho que era novembro, o shopping Light já estava com iluminação de natal. Terça-feira o pessoal daquela Kombi vinha dar sopa perto do escadão do Viaduto do Chá. Lembro como se fosse um sonho estranho. Dessa vez vieram com eles um pessoal diferente com uma câmera, uns seis deles. Um povo assustado, nem desceram da Kombi, sequer abriram a porta. Seu Nelson veio conversar com a gente. Disse que eram de uma faculdade, estudavam jornalismo, estavam fazendo uma reportagem sobre a distribuição de comida nas ruas.
De longe, e com a normal cara de insatisfeito, Mané ouvia tudo. A palavra "câmera", para ele era um trauma, dizia. Eram todos uns mentirosos, falsos, hipócritas. Naquela época eu nem imaginava o que era ser hipócrita. Anos depois fiquei sabendo que meu tio apareceu uma vez na televisão, quando foi espancado por um bando de bacanas em uma travessa da Paulista, três ou quatro anos antes de morrer. Os boys foram soltos, ele não recebeu nem médico. Apareceu ao vivo, todo arrebentado em pleno meio-dia. Foi tido como derrotado pela galera do Anhangabaú.
- Mas eles não vão falar nada comigo não, disse meu tio.
- Po, Mané, calma, eles são gente fina, vieram na boa, estão com a gente.
- É o cacete, vamo ver se alguém desce com câmera aqui, disse já gritando e apontando para a Van, poucos metros à frente.
- Tá bom, deixa pra lá, eu falo com eles, seu Nelson finalizava a idéia.
De dentro do carro, Maurinho, do terceiro ano, provavelmente ouvia Mané dizendo tudo. Esse moleque era maluco. Depois fiquei sabendo, o maluco era lá do Brooklyn. Mas da parte boa, sabe. Abriu a porta e fingia estar apenas ajeitando a câmera, mas todo mundo já tinha visto a luz vermelha acesa. Mané apontava de longe e ainda dava pra ouvir os gritos dos outros. "Fecha a porta, Mau, que merda!".
Meu tio correu em disparda pra cima do moleque. Tirou a câmera da mão dele, afastou todo mundo. Deitou o fulano no chão e distribuiu. Jogou a câmera com força umas 3 vezes na cara, o garotão ensanguentado, já tinha parado de reagir há um bom tempo. Os gêmeos, que estavam segurando o pessoal da sopa, soltaram, apavorados. Seguraram os braços de meu tio, que chorava e tremia muito, não se sabe o porquê.
Mané voltou a correr quando uma viatura parou em cima do viaduto e viu a confusão. Os policiais desciam a milhão os degraus, pulando lances de escada, pareciam uns animais caçando uma presa. Só os mais velhos ficaram no local e ainda assim, foram agredidos até Seu Nelson dizer que eles não tinham nada a ver e comentar sobre meu tio. Eu, que já tinha corrido, fingia dormir do lado oposto de onde estava o tumulto, mas conseguia ver tudo.
Outra vez os policiais farejaram sua caça e foram atrás. O camburão deu a volta e fechou a rua na frente do terminal bandeira. Alguns dizem ter visto meu tio com algemas, outros dizem que ele apanhou como um cão e havia tomado um tiro nas costas. bem que eu havia ouvido uns disparos no dia. A única certeza que tive ao acordar no outro dia de manhã foi a de que jamais veria meu tio novamente. Mas algo dele parece ainda estar em mim. Talvez o espírito de lutar pelo que temos, mesmo sem termos nada, é o que me faz sobreviver dia após dia, sozinho, no inferno do centro de São Paulo.
Dois lados podres da moeda
por Robson Assis | tags Crítica | 29.7.08 COMENTE!
Sobra a eles a rua vazia e um caos que atordoa a mente. O pai deitado sobre o asfalto parece dormir sobre um tapete de sangue. Os policiais chamam reforço e saem em disparada. Quando Neguinho e Biriba tentam entender chega outra viatura. Dois homens fardados chutam a fechadura com força. Estão conseguindo, até que a porta cede. Apontam as armas em suas cabeças, chutam os dois irmãos abraçados para o canto do cômodo. Eles tremem e continuam de olhos fechados, mais unidos do que jamais foram. Ouvem os policiais que derrubam os móveis, viram a casa de ponta cabeça e vão embora. Crescem com aquela cena na cabeça. "Policial não presta". O que a mente humana reserva para dois garotos traumatizados com órgãos de segurança, além de nascidos em bairros periféricos, nunca vamos saber. Quem vai se salvar? Os meninos, com estudo, trabalho e esperança, contrariando o sistema que lhes ignorou desde o início? Ou a socialite rendida dentro da mansão, chorando com uma arma apontada na cabeça? Os índices de violência provam: O futuro reserva mais riscos do que oportunidades.
Um dia em comum com o resto do mundo
por Robson Assis | tags Contos | 23.7.08 COMENTE!
"E eu seria então o mano mais firmeza da quebrada, só por você..."
Xis
São quatro e trinta e cinco da manhã. Meus olhos quase não conseguem abrir, mas ninguém me mandou ficar acordado até tarde. Com aquele monte de policial na rua não dava pra dormir direito. Certeza que subiam a Principal na captura de alguém. O problema era a gritaria dentro dos becos, os avisos e o silêncio que se fazia quando se ouvia vozes de PMs. Fiquei da laje vendo tudo, enquanto Aninha, minha esposa, já na cama, reclamava.
E agora essa, tudo bem, vou acordar. Naquele momento, desligar o despertador parece a tarefa mais árdua do mundo, mas quando chega a hora do rush a gente esquece disso e percebe que tem coisa pior para enfrentar.
Finalmente consigo me sentar na cama. No disco que coloco no rádio, um Herbert Viana mais jovem e esperançoso canta: "Da cama pro banho, do banho pra sala, o sono persiste, o sol já não tarda, a vida insiste em seguir um velho ritual que sempre segue a tantos outros, o mesmo pão comido aos poucos", quando ouço esse trecho escovando os dentes e me olhando no espelho, pergunto a mim mesmo se o pessoal da rádio pensa nessas coisas.
São cinco e dois da manhã quando coloco os dois pés para fora de casa e desço a Principal, para pegar o primeiro ônibus da viagem. Nesta caminhada passo por algumas marcas de pneu no asfalto e lembro da polícia do dia anterior. Até que hora teriam ficado infernizando? Mão no bolso e sigo em frente.
Mais lá embaixo, vejo a fila quase vazia de ônibus e três garotos esperando o ônibus sentido bairro, dormindo cobertos com suas próprias blusas com marcas de skate que até hoje, vergonhosamente desconheço. Eles entram em um carro, talvez o primeiro do dia para aqueles lados. Eu continuo de pé, na fila.
- Moço, que horas são, por favor? - Me pergunta uma senhora de óculos e voz doce.
- Cinco e quarenta, senhora.
- Obrigado, viu. Tá uma demora esses ônibus, né?
É lei. Se você informar a hora para uma tiazinha e vocês estiverem em filas, salas de espera ou dentro de elevadores, ela vai emendar alguma conversa. Dando um pouco mais de corda, descobri que a senhora estava indo ao médico e pretendia chegar bem cedo. Disse sobre suas filhas, seus netos, mostrou fotos. Fui conversando com ela até o Hospital do Servidor Público, no final da Ibirapuera. Depois disso sentou um fulano que dormiu até às seis e cinquenta, quando chegamos no ponto final. Tive que acordar o cara. Isso, depois de ser acordado por outro que do banco de trás me deu dois tapinhas nas costas, indicando o ponto de chegada.
Desço a Praça da Sé tranquilamente, ainda me dá tempo de parar no boteco do Barba para tomar um café, comprar um maço de cigarros, trocar duas palavras sobre a quebra da invencibilidade do Corinthians na Série B. Chego no prédio dez minutos antes de meu horário. Faço uma brincadeira com Dona Ana, secretária, e vou para a sala.
O dia passa seco. Almoço no Barba, pra variar. Na quarta-feira ele faz a melhor feijuca do centro de São Paulo. Relatórios, arquivos, faço de tudo nessa empresa. Tenho até dois cargos, mas, óbvio, como em qualquer organização de cunho capitalista, recebo apenas por um deles. Já são quatro e vinte e daqui a pouco volto para o ponto que me entregou aqui pouco depois do sol nascer.
Acho que não existe nada mais contrastante do que ver o pôr-do-sol de cima do viaduto do chá. É uma cena lindíssima, gostaria que alguém fotografasse um dia. Ao mesmo tempo em que correm contra a morte os meninos com o saco de cola na mão e as meninas que limpam vidros de carro atrás de trocados.
Apertei um pouco o passo, cheguei no terminal Às seis da tarde.A fila já ganhava proporções que poucos podem imaginar. Duas, três filas de espera. Os ônibus chegam, lotam e saem. As filas só aumentam. As tiazinhas pensam no absurdo que é pegar um ônibus, várias pessoas conversam e sorriem, como se aquilo fosse bonito, ou realmente engraçado. Estranho jeito de levar a vida esse tipo de gente, eu acho. Não consegue entrar no ônibus porque está muito lotado, sorri. É maltratado pela balconista do banco, sorri. Vai entender.
Dessa vez, talvez pelo horário, não consigo lugar para sentar. Vou ao lado da porta, entre a escada de saída e o corredor. Ali é tranquilo. É impressionante como todos os dias eu acho que venho no coleitov mais lotado da cidade. Cada dia um pior. O sistema de transporte da cidade é ridículo, milhares de pessoas e três linhas para o mesmo lugar. Um celular toca funk enquanto dois caras conversam sobre alguma garota em comum.
Nesta hora, pensei na conspiração que rege o mundo: Ou estou sendo muito zoado por alguém que criou essa merda toda, ou é tudo verdade e as pessoas são realmente vazias. Esqueço isso quando vejo uma morena caminhar em plena Avenida santo amaro, com uma saia de seda e um decote que faria qualquer ser humano ter o mais primitivo dos desejos carnais. Dei risada quando lembrei que também sou vazio.
Desço no final, pego outro coletivo ou pouco mais cheio, talvez por ser menor. Pelo menos chego em casa rápido. Vejo a bolsa de Aninha jogada no sofá e imagino que acabou de chegar. Ouço o fogão ligado e a televisão da sala na novela das sete e minha linda mulher assitindo entre a cozinha e a sala. Ela não é a Julia Roberts, mas nem se fosse eu a amaria tanto.
Ainda um pouco suado - não do trabalho, da condução - chego ao seu lado e lhe dou um beijo no rosto, um abraço. Ela pergunta o que eu tenho. Respondo: amor. E ela ri, caminhando para a cozinha e terminando nossa comida. Também dou risada, nem eu mesmo acredito em mim. Mas acho que, sem o amor, nada destes dias tensos e dessa correria maluca por sobrevivência, iria funcionar muito bem.
Neste momento olho para o relógio que marca vinte e três e quarenta e oito. Minha princesa dorme e eu tenho algumas horas de sono para esquecer um pouco toda essa polícia, essa condução, esse capitalismo e essa gente doida - incluindo eu mesmo - do mundo em que vivo. Poucas coisas na vida conseguem dizer "Eu te amo" com tanta propriedade como ver sua garota dormindo ao seu lado. É tanta responsabilidade, tanta mente em parafuso, tanta maluquice, relatório, intriga, briga, desigualdade, maldade e tortura social que às vezes esquecemos de sentir uma simples saudade.
Xis
São quatro e trinta e cinco da manhã. Meus olhos quase não conseguem abrir, mas ninguém me mandou ficar acordado até tarde. Com aquele monte de policial na rua não dava pra dormir direito. Certeza que subiam a Principal na captura de alguém. O problema era a gritaria dentro dos becos, os avisos e o silêncio que se fazia quando se ouvia vozes de PMs. Fiquei da laje vendo tudo, enquanto Aninha, minha esposa, já na cama, reclamava.
E agora essa, tudo bem, vou acordar. Naquele momento, desligar o despertador parece a tarefa mais árdua do mundo, mas quando chega a hora do rush a gente esquece disso e percebe que tem coisa pior para enfrentar.
Finalmente consigo me sentar na cama. No disco que coloco no rádio, um Herbert Viana mais jovem e esperançoso canta: "Da cama pro banho, do banho pra sala, o sono persiste, o sol já não tarda, a vida insiste em seguir um velho ritual que sempre segue a tantos outros, o mesmo pão comido aos poucos", quando ouço esse trecho escovando os dentes e me olhando no espelho, pergunto a mim mesmo se o pessoal da rádio pensa nessas coisas.
São cinco e dois da manhã quando coloco os dois pés para fora de casa e desço a Principal, para pegar o primeiro ônibus da viagem. Nesta caminhada passo por algumas marcas de pneu no asfalto e lembro da polícia do dia anterior. Até que hora teriam ficado infernizando? Mão no bolso e sigo em frente.
Mais lá embaixo, vejo a fila quase vazia de ônibus e três garotos esperando o ônibus sentido bairro, dormindo cobertos com suas próprias blusas com marcas de skate que até hoje, vergonhosamente desconheço. Eles entram em um carro, talvez o primeiro do dia para aqueles lados. Eu continuo de pé, na fila.
- Moço, que horas são, por favor? - Me pergunta uma senhora de óculos e voz doce.
- Cinco e quarenta, senhora.
- Obrigado, viu. Tá uma demora esses ônibus, né?
É lei. Se você informar a hora para uma tiazinha e vocês estiverem em filas, salas de espera ou dentro de elevadores, ela vai emendar alguma conversa. Dando um pouco mais de corda, descobri que a senhora estava indo ao médico e pretendia chegar bem cedo. Disse sobre suas filhas, seus netos, mostrou fotos. Fui conversando com ela até o Hospital do Servidor Público, no final da Ibirapuera. Depois disso sentou um fulano que dormiu até às seis e cinquenta, quando chegamos no ponto final. Tive que acordar o cara. Isso, depois de ser acordado por outro que do banco de trás me deu dois tapinhas nas costas, indicando o ponto de chegada.
Desço a Praça da Sé tranquilamente, ainda me dá tempo de parar no boteco do Barba para tomar um café, comprar um maço de cigarros, trocar duas palavras sobre a quebra da invencibilidade do Corinthians na Série B. Chego no prédio dez minutos antes de meu horário. Faço uma brincadeira com Dona Ana, secretária, e vou para a sala.
O dia passa seco. Almoço no Barba, pra variar. Na quarta-feira ele faz a melhor feijuca do centro de São Paulo. Relatórios, arquivos, faço de tudo nessa empresa. Tenho até dois cargos, mas, óbvio, como em qualquer organização de cunho capitalista, recebo apenas por um deles. Já são quatro e vinte e daqui a pouco volto para o ponto que me entregou aqui pouco depois do sol nascer.
Acho que não existe nada mais contrastante do que ver o pôr-do-sol de cima do viaduto do chá. É uma cena lindíssima, gostaria que alguém fotografasse um dia. Ao mesmo tempo em que correm contra a morte os meninos com o saco de cola na mão e as meninas que limpam vidros de carro atrás de trocados.
Apertei um pouco o passo, cheguei no terminal Às seis da tarde.A fila já ganhava proporções que poucos podem imaginar. Duas, três filas de espera. Os ônibus chegam, lotam e saem. As filas só aumentam. As tiazinhas pensam no absurdo que é pegar um ônibus, várias pessoas conversam e sorriem, como se aquilo fosse bonito, ou realmente engraçado. Estranho jeito de levar a vida esse tipo de gente, eu acho. Não consegue entrar no ônibus porque está muito lotado, sorri. É maltratado pela balconista do banco, sorri. Vai entender.
Dessa vez, talvez pelo horário, não consigo lugar para sentar. Vou ao lado da porta, entre a escada de saída e o corredor. Ali é tranquilo. É impressionante como todos os dias eu acho que venho no coleitov mais lotado da cidade. Cada dia um pior. O sistema de transporte da cidade é ridículo, milhares de pessoas e três linhas para o mesmo lugar. Um celular toca funk enquanto dois caras conversam sobre alguma garota em comum.
Nesta hora, pensei na conspiração que rege o mundo: Ou estou sendo muito zoado por alguém que criou essa merda toda, ou é tudo verdade e as pessoas são realmente vazias. Esqueço isso quando vejo uma morena caminhar em plena Avenida santo amaro, com uma saia de seda e um decote que faria qualquer ser humano ter o mais primitivo dos desejos carnais. Dei risada quando lembrei que também sou vazio.
Desço no final, pego outro coletivo ou pouco mais cheio, talvez por ser menor. Pelo menos chego em casa rápido. Vejo a bolsa de Aninha jogada no sofá e imagino que acabou de chegar. Ouço o fogão ligado e a televisão da sala na novela das sete e minha linda mulher assitindo entre a cozinha e a sala. Ela não é a Julia Roberts, mas nem se fosse eu a amaria tanto.
Ainda um pouco suado - não do trabalho, da condução - chego ao seu lado e lhe dou um beijo no rosto, um abraço. Ela pergunta o que eu tenho. Respondo: amor. E ela ri, caminhando para a cozinha e terminando nossa comida. Também dou risada, nem eu mesmo acredito em mim. Mas acho que, sem o amor, nada destes dias tensos e dessa correria maluca por sobrevivência, iria funcionar muito bem.
Neste momento olho para o relógio que marca vinte e três e quarenta e oito. Minha princesa dorme e eu tenho algumas horas de sono para esquecer um pouco toda essa polícia, essa condução, esse capitalismo e essa gente doida - incluindo eu mesmo - do mundo em que vivo. Poucas coisas na vida conseguem dizer "Eu te amo" com tanta propriedade como ver sua garota dormindo ao seu lado. É tanta responsabilidade, tanta mente em parafuso, tanta maluquice, relatório, intriga, briga, desigualdade, maldade e tortura social que às vezes esquecemos de sentir uma simples saudade.
Contos da Sul
por Robson Assis | tags Contos | 22.7.08 COMENTE!
Letra do grupo Apocalipse 16 que inspirou a criação deste blog. Esta música conta três histórias tenebrosas envolvendo criminalidade e injustiça e são grande fonte de inspiração. Para quem quiser ouvir, a música está no disco "Segunda Vinda, a Cura", de 2000. O último trecho é meio que um manifesto espiritual do rapper Pregador Luo, mas as três histórias são marcantes demais, vale a pena.
Esperança, eu sempre tive esperança. Sempre acreditei num mundo melhor, mesmo quando engravidei ainda sendo de menor. O pai do meu filho, ele me abandonou. Mas ainda assim eu acreditava nas pessoas. Acreditava que um dia pudesse ser feliz. Eu estudava, procurava de todas as formas ser uma mulher honrada. Sonhava com um futuro melhor pro meu filho e minha família. Todo dia cedo ia do Jardim Ângela pro centro à procura de emprego. Meus pais ganhavam pouco, eu tinha que ajudar no susteno na casa. Um dia recebi um telegrama que dizia que eu estava contratada. Naquele dia fui dormir em paz pois logo estaria empregada.
Primeiro dia de trabalho, estava muito feliz, pois minha vida estava começando a ser como eu sempre quis que fosse, todos no escritório foram gentis e doces. Passou a manhã, veio a tarde, o primeiro dia se foi, fui pra casa naquelas condições, condução lotada, porém feliz, estava empregada. Segundo dia de trabalho fiquei até mais tarde a pedido do meu patrão pois havia uma reunião e eu não podia recusar, pois havia o risco dele me dispensar. Deu 21h30 saí, desci, sentido Praça da Bandeira, apertei o passo, fui ligeira no caminho de SAnto Amaro toda parada, dormia, acordava e nada, não via a hora de chegar. Desci do ônibus olhei no rológio, 23h30, vi a rua escura vazia e molhada. Só eu Deus e mais nada. Fui pelo caminho normal, beirando o matagal, tive um presságio mal, parecia que estava próximo o meu final. Mas que nada, nem terminei o colegial, besteira, pensamento normal, antes fosse. Meu pensamento foi interrompido por três indivíduos que não foram doces. Uma pancada na cabeça me deixou atordoada, lembro de ver o mato se abrir e pra dentro ser arrastada. Tive minha roupa rasgada, fui estuprada, torturada, meus sonhos foram sumindo até se transformarem em nada. Dois dias depois fui encontrada, morta, com a cara desfigurada.
Contos da sul!
Lá no Nordeste, eu sempre ecutava falar que São paulo era a terra da oportunidade, imaginei que vindo pra cá eu podia me transformar em alguém de verdade. Onde eu morava tinha seca, faltava água, a comida nunca dava. Acabei vindo pra São Paulo, cheguei aqui sem nada. Só com a esperança de com o meu trabalho conquistar meu carro, minha casa, mandar dinheiro pros meus irmãos. Não demorou pra perceber que era tudo ilusão, acabei tendo que me sujeitar. A maioria dos que vem do norte acaba sempre na periferia. Fui parar num lugar chamado Capão Redondo, onde o crime é cruel o tempo todo, polícia versus ladrão. Aqui eu era só mais um servente de pedreiro, sem nenhuma qualificação.
Logo arrumei um trampo numa construção, emprego de peão, mas para mim já estava bom. Tinha almoço, janta, 100 reais pra começar, um lugar pra me alojar. Não podia reclamar, a memória do meu pai eu jurei que iria honrar. Ele dizia pra eu trabalhar e nunca jamais roubar. Também dizia que isto estava escrito na bíblia em algum lugar. Três meses completou que estou em São Paulo, a mão cheia de calo, o trabalho é pesado, cinco da manhã já estou acordado, ah como eu queria ter estudado. Deito e levanto nisso desde que cheguei aqui, nunca saí nem mesmo pra me divertir. Chegou sexta-feira e os outros caras me chamaram pra ir no bar tomar um trago, jogar carta, dominó ou bilhar, que mal há em os acompanhar? Tava contente, pois pra mim era um presente, um trabalho de verdade, sentia orgulho, eu era gente. De repente, um Opala freou bruscamente na porta do bote eu fiquei esperto, dois cara armado. O de capuz na cara entrou, um deles gritando perguntou quem era o baiano. Me levantei da mesa em que estava sentado tremendo, suando, assustado. Pois esse era o apelido que os mano da obra tinham me dado. O cara de capuz que estava com a automática na mão me mandou deitar no chão, chamou o ouyto, engatilhou, apontou pra minha cabeça e fuzilou. A única coisa que me lembro é do meu sangue escorrendo e os caras saindo correndo. Antes de morrer, ouvi alguém dizer que o Baiano que os cara procurava era o nóia da área, que cheirava e não pagava, não pagava.
Contos da sul!
Na periferia, é sempre assim. O pior fica pra você, o pior fica pra mim. Crescer sem pai, sem mãe, é difícil. O fato de saber que eles morreram num assalto me deixa revoltado, morô? Ai de mim se não fosse o meu avô que me criou, me botou na escola. Se não fosse ele acho que nem tava mais vivo. Mas aí, estar vivo até hoje acho que é o meu castigo. Tem marcas que nunca vão ser apagadas, tem feridas qe vão doer pra sempre na alma da gente. A estrada que eu to até hoje não tem volta, também não dá pra ir pra frente. Quando era pivete, imaginava que tudo fosse diferente.
Lembro-me na infância, eu, moleque, cheio de esperança correndo no campão de terra atrás da bola, perdi a conta de quantas vezes cabulava na escola. O dia todo debaixo do sol, a única coisa que eu queria era ser um jogador de futebol. Era melhor que a maioria dos moleque, jogava o dia inteiro e para mim não tinha breque. Meu avô que me criou, sempre me apoiou, foi ele que me levou a primeira vez no estádio. Quando vi o campo meus olhos brilharam. Meu avô era o único que comigo se importava, ele era a única pessoa que eu tinha, minha família e eu o amava. O tempo passando e eu sempre no campão treinando. Já estava com 16, fiz vários testes no Corinthians, São Paulo, Palmeiras, mas consegui entrar no Juniors da Portuguesa. Meu avô bancava tudo, até minha chuteira, era ponta firme. Queria me ver titular do time, longe do crime. Um dia eu estava treinando no campão junto com os outros manos quando vi um maluco se aproximando. Parou o jogo, chamou todo mundo de canto, olhou pra mim, me deu um barato estranho, percebi que era um pó branco. Mesmo sabendo o que era resolvi experimentar, foi ali que minha vida começou a mudar. Perdi minha paz, sempre queria muito, sempre queria mais e mais, esqueci o futebol e agora jogava o jogo de satanás. Minha vida passou a ser outra, não demorou muito e eu já estava envolvido com os parceiros da vida louca. Mano, como tudo mudou em apenas um ano. Não conseguia me libertar, não tava com disposição, nem mais para assaltar. Era dia do meu aVô retirar a aposentadoria, ele chegou em casa, tinha acabado de receber. No descontrole segurei-o e comecei a bater. Tava na nóia brava, ele gritava dizendo que me amava, eu não ouvia e nem me importava, mas no fundo, em algum lugar aqueles gritos me machucavam. revistei-o por inteiro, mas ele tinha escondido o dinheiro. Saquei o oitão e pá, dei o primeiro. Tentou me explicar que havia guardado para me pagar um tratamento. Infelizmente, nem deu tempo, sem dó descarreguei a arma. Naquele momento matava a única pessoa que me amava, naquele momento eu perdi a minha alma, hoje só tenho lembranças e mais nada. Atrás das grades do Carandiru até a minha honra foi tirada. Preso há quatro anos, sem previsão para sair. Estupro, espancamento e um vírus que está me consumindo por dentro. Mano, eu só lamento, meu Deus, como eu queria poder voltar no tempo, poder voltar no tempo.
Contos da sul!
As injustiças, as desigualdades, um dia vão ter fim. O sol da justiça vai brilhar na periferia, morô? O sangue vai deixar de escorrer pela calçada,a pivetada vai estar segura por aí, correndo. As mães não usarão mais luto pelos seus filhos. Não haverá mais tiros, nem sirenes, não vai ter mais humilhação pela polícia, nem corpos no chão à espera da perícia. As prostitutas e o dinheiro não vão salvar ninguém, morô? A BMW do boy não vai servir pra nada, nem as jóias, nem o ouro, nem a prata. Está chegando o dia da redenção dos humildes. Está chegando o dia da segunda vinda, a cura. Segunda vinda do filho de Deus, Jesus, o Senhor dos senhores, rei dos reis. Então escuta com atenção, confia nele, meu mano, confia nele, mina, somente Deus pra dar paz a sua vida. A paz não é um sonhos, sua palavra senhor é lâmpada pros meus pés. Guia-me pelas veredas da justiça, ele virá, vai voltar pra buscar os justos, os humildes de todas as quebradas do Jardim Guarujá, Vila Moraes, Vila Nhocuné, Vila Cachoeirinha, a paz não é um sonho Heliópolis, Campanário, Jardim Herculano, vocês vão ter paz quando Ele voltar. Monte Azul, Vila Brasilina, Jardim São Bento, Jabaquara, Jardim Damasceno, Parada de Taipas, Morro do Macaco, aí mano, a paz não é um sonho, escuta o que eu to te falando, aí, é muita treta, mas é, vai voltar. Acredita nisso periferia.
Os exterminadores de sonhos
por Robson Assis | tags Crítica | 21.7.08 COMENTE!
Eles nascem em berços de ouro. São criados por empregadas pobres e, geralmente, negras. O pai empresário, a mãe socióloga. Crescem a acumulam bens de consumo, criam fortalezas em suas próprias vidas. Segurança financeira, como se diz por aí. Levam uma vida desregrada na juventude, sua falta de preconceito reflete também no fato deles não se importam com nada. E viram o jogo. Aos 30, outros filhos, outras gerações, novos berços, Hugo Boss e Bausch&Lomb no batizado do moleque. O mundo gira pelo dinheiro e vai jogando pra fora todos os outros, alheios a este "natural" sentido da vida. Sonhos ultrapassados por dificuldades de sobrevivência, idéias atropeladas por necessidades. Enquanto os exterminadores de sonhos acabam de comprar uma cobertura de luxo no novo shopping da Cidade Jardim.
De pé, eles aplaudem
por Robson Assis | tags Letras e Poesia | 18.7.08 1 Comentário
Não tem quem faça enxergar
De longe o lugar em que fiz meu lar
Não tem lixeiras gigantes
Nem colchões flutuantes sobre a piscina
Quem dera minha sina
Fosse ter de não ver
A dor da mãe quando o dia amanhecer
Seu filho baleado dentro do carro
Correndo atrás de um futuro ainda blindado
O PM que matou se levanta pra tomar café
A mãe chora e no terço coloca a fé
A rotina de sangue que o poeta cantou
Continua tirando meninos do gol
E colocando na linha
De frente pra morte
O sistema não quer todo mundo morto
Preferem ter alguém no sufoco
Para lamentar a falta de comida
E pedir no programa pra que o Gugu reconstrua sua vida
Aí sim eles vão sorrir
Sentados na sala de estar
E aplaudir no conforto do lar
o menino morto na frente do bar.
De longe o lugar em que fiz meu lar
Não tem lixeiras gigantes
Nem colchões flutuantes sobre a piscina
Quem dera minha sina
Fosse ter de não ver
A dor da mãe quando o dia amanhecer
Seu filho baleado dentro do carro
Correndo atrás de um futuro ainda blindado
O PM que matou se levanta pra tomar café
A mãe chora e no terço coloca a fé
A rotina de sangue que o poeta cantou
Continua tirando meninos do gol
E colocando na linha
De frente pra morte
O sistema não quer todo mundo morto
Preferem ter alguém no sufoco
Para lamentar a falta de comida
E pedir no programa pra que o Gugu reconstrua sua vida
Aí sim eles vão sorrir
Sentados na sala de estar
E aplaudir no conforto do lar
o menino morto na frente do bar.
Paranóia Passional
por Robson Assis | tags Contos | 17.7.08 COMENTE!
"É bem mais fácil falar da dor.
É bem mais fácil que falar do amor.
Dá mais ibope, chama atenção pros parceiros, pro mundão, né não?"
Genival Oliveira Gonçalves, GOG
É bem mais fácil que falar do amor.
Dá mais ibope, chama atenção pros parceiros, pro mundão, né não?"
Genival Oliveira Gonçalves, GOG
Helena estava cansada. Não suportava mais aquelas homenagens que recebia na igreja da Graça Celestial, que freqüentava no Jd. Monte Azul. Seu casamento era, deveras, o mais duradouro de todas as jovens do local, ela sabia disso, não eram necessários os semestrais buquês de rosa e as declarações de amigos e conhecidos ao final do culto. No próximo mês, seria aniversário dos dois, ela não queria nem imaginar.
Mas dessa vez, Jucilene, amiga do casal, falara tão a fundo sobre o relacionamento que fez Helena suspeitar. Ao sair do culto agradeceu a todos e viu de longe o cochicho de seu marido Carlinhos com a amiga. A adrenalina de poder enxergar os dois sem ser vista lhe fez saltar os olhos para um bilhete que Jucilene deixara no bolso de seu marido.
No caminho a pé entre as subidas e descidas de terra do bairro, o casal falava sobre como era bom estar juntos por tanto tempo e serem felicitados assim sempre. E Helena dizia tudo de maneira tão jocosa, que desta vez quem desconfiou foi Carlinhos, mas ainda assim não queria perder tempo e seguiu até em casa sem questionar.
Ao chegar, Helena o colocou contra a parede. Ele, receoso, viu a garota tirar botão por botão de sua camisa ao mesmo tempo que mordia a língua.
- Agora não, Leninha.
- Mas hoje a gente tem que comemorar, retruca a moça.
- To muito cansado, querida, depois a gente vê isso melhor.
Claro que jamais desconfiou da esperteza da garota com quem se casou. Era uma menina simples demais para bolar planos mirabolantes. Helena o viu colocar as roupas no canto do quarto, como de praxe, e entrar no banheiro resmungando algo. Correu para o quarto e apanhou o bilhete no bolso do rapaz. Um papel amassado e dobrado quatro vezes dizia:
“Carlinhos, é muito perigoso fazer o que fizemos no meio do culto. Se a Helena perceber vai melar tudo. Amanhã passo no seu trabalho às 18h30. Lá conversamos melhor. Ju.”
Fez questão de guardar o bilhete do jeito que encontrou. Finalmente, viu que não era apenas ela que estava cansada de seu relacionamento. E então as horas extras que ele dizia ter acumulado e nunca recebido começaram a fazer sentido, assim como as noites de sábado em que dizia estar no inventário. A traição de seu marido começava a se desenhar, bem na sua frente.
Naquela noite, não dormiu, o sangue fervilhava vingança. Havia esquecido todas as bençãos, todos os trechos bíblicos que fazia questão de decorar, queria apenas mudar de vida e sabia que não era nada difícil. Já havia imaginado os dois no local em que teve seus primeiros pecados da carne, o banheiro de deficientes inutilizado pela igreja. Outra vez o sangue parecia explodir de ódio.
Carlinhos acordou, saiu às 5h20 da madrugada de sexta, era sua rotina. Era o dia de pagar as contas, levou o dinheiro que sempre guardava nos cantos escondidos de sua casa. No caminho encontrou o bando que mais assustava os moradores da região. Julinho, Neca, Alemão e o pior deles, Garrincha. Esse último, parou e desceu do carro, encarando nosso personagem. Aos berros trocava com Carlinhos:
- Ce ta me tirando, doidão? Diz o furioso.
- Não, cla-claro que não, eu não fiz nada, responde Carlinhos temeroso pelo dinheiro que portava.
- Ah, e eu sou bobo então, sou bobo né.. Isso que ce ta me dizendo?
- Mas o que foi? Eu não fiz nada absolutame..
- To te zuando, mermão - dizia o malandro já rindo da cara do outro com seus parceiros – Vamo ali tomar uma breja pra finalizar essa noite, vamo!
- Não, que isso, preciso trabalhar ainda, mas valeu.
- Porra, to falando pra vir com a gente, maluco!
Após ver a arma na cintura de Garrincha e o estado ora tranqüilo, ora caótico do malandro, decidiu ir com eles e inventar qualquer desculpa para o atraso.
No boteco do Jé, tomou algumas doses de cachaça barata e saiu tropeçando na cadeira em que estava. Garrincha e Alemão, cumprimentaram o rapaz que às 6h30 partia sentido centro.
- Ele gelou, mano, mancada – Diz Alemão.
- Mancada? Mancada é trabalhar pros outro. Um dia zicado abre os olhos da gente.
E todos na mesa riram fervorosamente ao ver Carlinhos tropeçar outra vez na guia em frente ao bar.
Como há muito não bebia por conta de sua religião, Carlinhos percebeu a merda que tinha acabado de fazer. Completamente bêbado, sentou no final do escadão e chorou. Precisava contar a Helena sobre seu plano com Jucilene, precisava pedir demissão. Mesmo se passasse fome, se sentiria mais vivo. Havia, então, tomado uma decisão. Queria viver.
Helena acordara às 7 e meia com um ar estranho entre a angústia e a sede de vingança, desceu à padaria. No caminho, ao passar pelo bar do Jé, viu malandros assobiando, bêbados, dizendo palavras chulas em relação à ela. Virou a cara e neste segundo, enquanto olhava para o outro lado, pela primeira vez se permitiu olhar de volta os fulanos que bebiam de maneira incessante. “Chega aí, morena, tem um lugar aqui pra você”, grita Alemão.
Ela dá outros três passos e volta ao bar.
Entra, finge não ver os rapazes na mesa, que a olham como Lobos que cercam uma presa. Compra um maço de cigarros, fato este que não fazia desde os 17 anos, quando era uma garota rebelde, e pergunta ao Jé se tem fósforos. “Mas ela não é aquela mina da igreja?” se perguntam aos cochichos os quatro malandros. Quando Jé se vira para pegar os fósforos:
- Aqui, morena, pode acender aqui – Alemão estende o braço com o isqueiro para a moça.
Ela acende. Olha para os rapazes durantes três segundos e solta os cabelos. Os quatro se sentem num filme em câmera lenta. Ela se senta, olha para os rostos apavorados dos boquiabertos malandros. Se serve de um copo de cerveja.
- E então? Pergunta a garota enquanto dá seu primeiro gole.
Nenhum daqueles jamais havia visto aquilo. Afinal, eles infernizam a vida de milhares de garotas do bairro. Nenhuma delas, a não ser as mais conhecidas e atiradas, nunca ousou virar o rosto, olhar para eles. E a que menos esperavam, a crente, como chamavam, se voltou, sentou à mesa e pegou uma cerveja. Após três vezes perguntando para si mesmo se estava bêbado demais, Garrincha despertou:
- É, morena, ce é gata demais. Qual é a sua graça, meu bem?
- A que você quiser, responde uma Helena quase inconcebível de sensualidade.
Carlinhos acabara de acordar na guia. Não sabe como havia dormido, nem como tinha parado ali. Olhou para os lados e notou o desprezo das pessoas no ponto de ônibus, como se fossem testemunhas vivas da degradação da pior das espécies. Procurou sua bolsa e não encontrou. Só então percebeu no que havia se metido. Levaram seu dinheiro e o que restava de sua moral. Ele decidiu ir pra casa, encontrar sua mulher, dizer que queria outra vida, em outro lugar e assim falar sobre seu segredo com Jucilene.
Andou com a cabeça fervendo até chegar na rua de sua casa. Pensava em seu trabalho, nas desculpas que teria de arrumar, na reação de sua esposa para o que iria lhe oeferecer. Abriu a porta de casa e deu de cara com Alemão fumando um cigarro no sofá. Não entendeu nada. “Como o filho da puta sabe onde eu moro?”, o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça.
Olhando surpreso e calado para o malandro, Carlinhos recobra os pensamentos e começa ouvir barulhos parecidos com sexo. Antes de pensar em Helena, vê sair de seu quarto Garrincha puxando o zíper das calças e, antes que ele fechasse a porta, nosso personagem tem a visão certa do inferno: Julinho e Neca sobre sua mulher, em movimentos bruscos e posições que jamais imaginara.
Caiu de ombros como um derrotado. Não pensou em Helena, ou em qualquer um dos quatro malandros que invadiram sua casa. Temos agora outro personagem em busca de vingança. Garrincha tentou entrar no quarto para avisar os três na cama, mas era tarde demais. Carlinhos já havia se levantado e não pensou duas vezes quando viu a arma em cima da mesa: “Porra!” Deu um grito que assustou Dona Maria, vizinha da casa, que ao mesmo tempo parou de lavar a louça para ouvir o alvoroço.
Saía então do quarto uma Helena de cabelos bagunçados, camisola amassada e maquiagem estragada, mesmo àquela hora da manhã. Carlinhos jamais ousou imaginar a cena. Os outros dois, medrosos, vestiam rápido suas roupas, podia se ver na fresta da porta entreaberta.
- Helena, o que você está fazendo? Diz Carlinhos desesperado.
- Diz você, o que você tem feito com a vaca da Jucilene no meio do culto?
Arregalou os olhos. Como será que sua esposa descobrira o tal segredo dos dois? Mesmo assim abriu um sorriso desesperançoso por imaginar o que ela estava pensando.
- O que você sabe?
- Sei que ela anda te mandando uns bilhetinhos. Que vocês fazem coisas escondidas no meio do culto. No meio do culto, Carlos?
- Ela trabalha numa imobiliária, você sabia disso?
- Dane-se, e eu quero lá saber onde essa piranha trabalha? Retruca Helena.
- Chega! Carlinhos interrompe com um grito como da primeira vez.
Carlinhos estava mais cansado do que com raiva. Em uma manhã que seria comum, teve sua vida toda despedaçada. Agora estava apenas nervoso e cansado. Então alinhou os malandros ao lado de sua esposa. A arma que tinha nas mãos era a única dos quatro. Pensou bastante antes de tomar a decisão e deu o primeiro e único tiro da história. Em sua própria cabeça.
Os malandros saíram em disparada, afinal, quem acreditaria na versão deles? Além disso, Neca era foragido da polícia. No último Dia das Mães deixou o presídio em que estava e não voltou mais. Correram sem perceber Dona Maria que da janela ouviu o disparo e se abaixou, mas ainda conseguiu ver os quatro em disparada e ligar rapidamente para a polícia.
Helena, em estado deplorável, gritava de horror pela cena que presenciara. Ao lado de seu marido ensanguentado, leva às mãos a arma que o matou e faz o mesmo. Não conseguiria explicar nem a si mesma o que havia feito nesta manhã. A polícia chega e encontra os dois corpos sobrepostos. Dona Maria não consegue explicar nada aos oficiais.
O dia inteiro se passa, os dois vão ao IML, amigos da igreja preparam o velório, mas não conseguem falar com Jucilene, que às 18h45 espera Carlinhos e não entende nada por ele não aparecer. Pergunta na portaria, descobre que o amigo havia faltado no trabalho. Deixou um recado ao porteiro do prédio, para ser entregue ao amigo junto a um documento:
"Carlinhos, a casa nova está pronta! Como não sei quando vou te ver novamente, na semana que vem, na data do aniversário de vocês, eu entrego a chave. Este documento do envelope é a escritura. Achei que gostaria de ver. A Helena ainda nem desconfia de nada! Ela quase nos viu ontem, mas sem dúvida a hora que souber da casa nova vai ficar muito feliz! Beijos, Ju."
O envelope nunca saiu da gaveta do porteiro.
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