Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez? Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso, descia.
Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajunta que fazia homens inocentes morrerem em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veia do rosto saltavam e pareciam linhas de trem que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas de sua parte.
Mais alguns metros, refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não ver mais a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando algo que parecia funk carioca. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.
Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas e entradas escuras da favela.
Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. Para o azar do que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado.
Deu um chute na cara do corpo do policial que carregava e prosseguiu.
Inventava orações hereges durante todo esse trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".
Faltavam 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.
Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de 8 viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone pede para que se entregue. Ele pára. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes.
Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma dose na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão.
O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, que servia de escudo. Arrastou consigo o corpo que trazia. Por algum motivo tinha de levá-lo. Algo parecido com uma gosma já ficava no chão, de tanto arrastar aquela cabeça.
A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.
Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.
Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltavam nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.
No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram.
Nosso João só queria justiça para os seus.
"E João não conseguiu o que queria quando desceu o Jd. Brasília pra com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente pra por um fim em toda essa gente que só faz sofrer."
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