As Flores Malditas

por Robson Assis | | 17.10.08

- A decisão foi sua, o dinheiro era pra semana passada.
- Calma, mano, me dá mais uns dias, a gente é irmão, truta, por fav...

Dona Maria ouviu o disparo como se tivesse sido dentro da sua casa, mas não era. Três ruas acima, na boca do Tiziu, Sandrinho, seu filho, acabara de morrer na mão de traficantes para quem devia dinheiro do crack que havia tentado vender na última festinha da zona norte, com o pessoalzinho da USP. Não conseguiu vender nem metade. Seu vício o fez usar a festa toda, sem miséria. É como se colocassem um crocodilo para tomar conta de um açougue.

Naquele momento Maria, mãe/pai de família, sozinha, havia tirado a mente da TV por alguns instantes. Foi como se o tiro lhe dissesse que havia algo errado na ordem natural das coisas. Levantou, bebeu água, voltou a sentar na frente do aparelho e tentou se distrair. Certa aflição a rondava, não podia imaginar o que era. Assistia a cena do casal romântico, na época o Tarcísio e a Glória, mas nem eles a prendiam mais a atenção.

Percebe que seu maço estava acabando quando acende o primeiro cigarro, vício adquirido após a derrocada de Sandrinho, seu filho, nas drogas, pelas várias vezes que o buscou em lugares distantes, metido em encrencas com a polícia, ou largado após uma boa surra. Sempre se segurava para não ir, tinha dito a si mesma que jamais aceitaria uma coisa dessas em sua casa. Mas nunca tinha jeito, Dona Maria era mãe. E ao lembrar destes dias, de seu filho, da perdição, do primeiro dia em que dormiu chorando quando ele passou um tempo na recuperação paga pelos tios lá de Brasília, da raiva quando expulsou o menino de casa quando ele "noiou" o radinho da sala, ela surtou em silêncio, apertou uma das almofadas do sofá com força, como se fosse rasgá-la. Parou. Aumentou o volume da TV, talvez fosse isso.

Continuou a prestar atenção com certo desprendimento, muitas vezes sem ouvir o que diziam os atores. Parecia olhar mais o relógio do que a própria TV. Finalmente acabou o capítulo. Desligou a TV, arrumou objetos jogados na sala, pegou o boné que Sandrinho havia esquecido e levou ao quarto do rapaz, sentou em sua cama e chorou um pouco. Estava infeliz com a vida que levava, não entendia porque seu filho tinha de se envolver com gente errada, como conseguia se viciar daquele jeito tão triste em compostos químicos que não sabia nem de onde vinham.

Secou as lágrimas, foi até seu quarto. Em um silêncio quase mortal, arrumou a cama de casal que, após a morte de seu marido quatro anos atrás, dividia apenas com suas mágoas e os pensamentos de esperança que enchiam o quarto de uma luz que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Se deitou e em exatos seis minutos após a oração levantou e decidiu que não ia conseguir dormir. Talvez esperar o filho, e que dessa vez ele não tenha feito na errado de novo.

Voltou a sala, ligou a TV para desbaratinar o tempo que passava ali. Fumou os dois últimos cigarros do maço. O Jornal trazia algumas notícias de fazendas invadidas por sem-terra cansados de esperar a reforma agrária, crises econômicas quebrando bancos, nada que entendesse muito. Já passava das 11 da noite, seu filho não voltava. Talvez dormisse fora, como em outras ocasiões, mas o estado de alerta dizia que não era bem isso o que tinha acontecido.

Trancou a porta e foi até o bar sem perceber o movimento na travessa, ruas acima de sua casa. Pediu um Lucky Strike, "pra dar sorte", sonhava. Percebeu que os presentes a entreolhavam com desânimo e certo receio. Saiu sem entender nada.

Antes de cruzar o farol, percebeu o movimento. Caminhou pra ver o que era, tinha muita gente na rua e aquela sensação estranha ficava cada vez mais forte com os passos em direção ao tumulto. Aqueles que fechavam a roda sobre o ocorrido olharam pra trás e deram espaço à ela. Todos saíam aos poucos quando viam Dona Maria se aproximando, até que ela conseguiu ver o corpo de seu filho com um tiro no peito. Ajoelhou, colocou as mãos no rosto e finalmente desabou em prantos.

No outro dia, Pilé, um dos meninos envolvidos com o tráfico da região em que morava estava no enterro. Era 'amigo' do finado e sentiu que devia estar lá para presenciar os últimos momentos do corpo do rapaz. Comprou uma rosa na entrada do cemitério e entrou com ela. Parecia mesmo triste, mas conformado e entendedor da situação. Dona Maria o conhecia, sabia de seu envolvimento na boca de fumo. Viu ele de longe, mas não conseguia dizer qualquer palavra desde que acordou.

Ao lado do caixão, Dona Maria ouviu o padre encaminhar a alma de seu filho para os céus. E viu os parentes e conhecidos jogarem as flores sobre seu corpo.

Quando Pilé se aproximou, Dona Maria pegou a flor de sua mão e disse não querer que seu filho subisse ao céu com lembranças dos dias negros que passou neste universo. Pilé ouviu e deu as costas num êxtase momentaneo que o dividia entre a raiva e o discernimento das palavras que aquela mulher acabara de lhe dizer. Dona Maria pisou e viu as pétalas se desfazerem na terra daquele lugar que voltaria anos depois apenas para lembrar seu filho nas datas comemorativas que mais gostava quando pequeno, como seu aniversário, a Páscoa e o Natal.

Dona Maria era mãe. E mais uma vez - ou pela última vez - livrou Sandrinho das flores malditas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário