I.
De manhã me levanto com aquele despertador
Que mais parece querer que eu me suicide naquele instante
Tudo na porra do meu dia parece querer isso
Me entreolho no espelho, com as luzes apagadas
Para não acordar ninguém que ainda esteja sonhando
Vejo meus livros, meus K7s, minhas revistas
E por mais forte e pesado que eu insista
Não consigo mais ver vida dentro daquele lugar
Pego o carro, passo por bairros conhecidos
Uma estrada que chega até o rio e me leva ao trabalho.
Estaciono, passo o crachá em algumas catracas
Subo sonolento as escadas, com raiva
A última catraca me cede passagem, sento à mesa
Mensagens, cobranças, planilhas, notas fiscais
Certamente há quem sinta pena
Vejo o dia clarear, o sol adentra a sala por uma janela com frisos
Realmente parece um cadeião para condenados.
Na hora do almoço, cruzou outras duas catracas
Me sirvo de um bandeco comida sem gosto e pálido
E, pelo menos, me sirvo.
II.
A tarde chega, um calor, telefones que tocam, conversas
Uma dor nas costas provoca e amaldiçoa o desânimo
Vejo milhares de pessoas, milhares de máquinas
Sedentos por algo além de tocável, que se possa mostrar
Carros do ano, apartamentos de luxo, brindes de champagne no natal
E eu com este gosto podre, este fel infernal
Vou matando os segundos até que as horas tenham fim
Não me empenho, não prospero, não tenho esperança
Acho que muito disso morreu em mim ainda quando criança
E o que sobrou foram os restos mortais de um anjo frustrado
Minhas paixões são cada vez mais sobrepostas por esse tédio
Criamos em nossas mentes, ilusões perfeitas
E a omissão a nós mesmos acaba sendo a cura para todas as doenças
Quem sabe um dia isso não terá um fim incerto
Tenho certeza que não vou ouvir isso de ninguém aqui perto.
III.
Mais de 10 horas neste lugar me traz uma angústia
Que eu sequer consigo demonstrar
Entro no carro após o expediente, ligo o rádio
Boto pra escutar as mixtapes que gravo e trago comigo
Volto pela mesma estrada, os mesmos lugares
Os mesmos acidentes, o mesmo trânsito opaco e frio
O próprio sol já se encarregou de descansar
Cansou de me esperar para ir deitar
Chego em casa, abro a porta
Sinto quando minha presença incomoda
E minha casa se torna o único lugar do mundo
Em que não me sinto em casa.
IV.
Passo a tentar ler algum livro, coisa que o valha
Deito na cama, ligo o som, pego o Baudelaire
Dez minutos depois, sinto que nem ele me quer
E adormeço para no outro dia recomeçar este martírio
Uma detenção sem muros que o poeta cantou
E que por muitos e muitos anos
Ainda aqui estou.
Criando monstros e fantasmas
por Robson Assis | tags Crítica | 20.10.08 2 Comentários
Certas vezes me sinto desleixado. Talvez por ser um jornalista escória da raça. Não leio o Estadão todos os dias, nem tento ler o NY Times - OK, mas só algumas vezes - Sequer tenho tino para escolher matérias boas e mandar para os amigos mais próximos. O que sei é enxergar o jornalismo de fora, como um analista, entender seus fracassos, seus trejeitos.
A mídia, com poucas 'Isabelas' para contracenar na retrospectiva, buscou mais atores, mais vilões, criaram uma minisérie de quatro capítulos com o caso do rapaz que sequestrou a ex-namorada e a amiga em Santo André. Cada dia aquilo, tinha mais cara de produção da Globo. O CDH parecia até com o Projac.
Conspirações à parte, quero que me expliquem. Por que um refém sequestrado voltaria ao seu cativeiro? Como uma equipe policial organizada, tática e meticulosa não consegue invadir um conjunto habitacional? Se havia risco do fulano matar as vítimas, porque não trataram o sequestrador como um criminoso, mas como um ser humano decepcionado com a vida?
Bom, aí vai minha recomendação cinematográfica de hoje para entender porque eu tenho tanta cisma com a mídia:
O Quarto Poder (1997)
Em Madeline, Califórnia, um repórter de televisão (Dustin Hoffman) que está em baixa, mas já foi um profissional respeitado de uma grande rede, está fazendo uma cobertura sem importância em um museu de história natural quando testemunha um segurança demitido (John Travolta) pedir seu emprego de volta e, não sendo atendido, ameaçar a diretora da instituição com uma espingarda. Ele nada faz com ela, mas acidentalmente fere com um disparo acidental um antigo colega de trabalho. O repórter, de dentro do museu, consegue se comunicar com uma estagiária que está em uma caminhonete nas proximidades, antes de ser descoberto pelo ex-segurança, que agora fez vários reféns, inclusive um grupo de crianças que visitavam o museu. Em pouco tempo um pedido de emprego e um tiro acidental se propagam de forma geométrica, atraindo a atenção de todo o país. O repórter convence ao segurança que este lhe dê uma matéria exclusiva e promete em troca comover a opinião pública com a triste história do guarda desempregado. É a sua chance de se projetar e voltar para Nova York, mas nem tudo acontece como o planejado. Os fatos são manipulados pela imprensa e tudo sai do controle, pois apenas altos salários e índices de audiência contam e a verdade não é tão importante assim.
A mídia, com poucas 'Isabelas' para contracenar na retrospectiva, buscou mais atores, mais vilões, criaram uma minisérie de quatro capítulos com o caso do rapaz que sequestrou a ex-namorada e a amiga em Santo André. Cada dia aquilo, tinha mais cara de produção da Globo. O CDH parecia até com o Projac.
Conspirações à parte, quero que me expliquem. Por que um refém sequestrado voltaria ao seu cativeiro? Como uma equipe policial organizada, tática e meticulosa não consegue invadir um conjunto habitacional? Se havia risco do fulano matar as vítimas, porque não trataram o sequestrador como um criminoso, mas como um ser humano decepcionado com a vida?
Bom, aí vai minha recomendação cinematográfica de hoje para entender porque eu tenho tanta cisma com a mídia:
O Quarto Poder (1997)
Em Madeline, Califórnia, um repórter de televisão (Dustin Hoffman) que está em baixa, mas já foi um profissional respeitado de uma grande rede, está fazendo uma cobertura sem importância em um museu de história natural quando testemunha um segurança demitido (John Travolta) pedir seu emprego de volta e, não sendo atendido, ameaçar a diretora da instituição com uma espingarda. Ele nada faz com ela, mas acidentalmente fere com um disparo acidental um antigo colega de trabalho. O repórter, de dentro do museu, consegue se comunicar com uma estagiária que está em uma caminhonete nas proximidades, antes de ser descoberto pelo ex-segurança, que agora fez vários reféns, inclusive um grupo de crianças que visitavam o museu. Em pouco tempo um pedido de emprego e um tiro acidental se propagam de forma geométrica, atraindo a atenção de todo o país. O repórter convence ao segurança que este lhe dê uma matéria exclusiva e promete em troca comover a opinião pública com a triste história do guarda desempregado. É a sua chance de se projetar e voltar para Nova York, mas nem tudo acontece como o planejado. Os fatos são manipulados pela imprensa e tudo sai do controle, pois apenas altos salários e índices de audiência contam e a verdade não é tão importante assim.
Caio Blat conta como foi morar em Capão Redondo
por Robson Assis | tags Notícias | COMENTE!
(14/04/2008 - 17h49)
Como nunca acredito em nada que leio por aí, vou ficar apenas com as impressões dos que me disseram sobre a passagem do ator pelo bairro.
Humilhado? Ele não viu nada mesmo...
Caio Blathttp://cineclick.uol.com.br/noticias/index.php?id_noticia=19095
Em entrevista para o jornal carioca O Dia, o ator Caio Blat (Baixio das Bestas) conta que foi humilhado no período em que morou numa favela do bairro de Capão Redondo, na periferia de São Paulo. Ao tentar ser atendido num restaurante, o garçon disse para ele pedir comida direto no caixa, e sumiu, deixando o ator à espera por 15 minutos. Segundo Blat, "na visão de muita gente, um garoto de periferia não pode ir a um restaurante". E completa: "Foi humilhante".
O ator alugou uma casa no bairro, "onde nasceu o rap", para se preparar para o papel de Macu e, ao mesmo tempo, estar mais perto das filmagens de Bróder, primeiro longa de Jeferson De. Ele diz que foi excitante viver um protagonista branco "sob a perspectiva dos negros".
Aos poucos, os resistentes moradores acabaram aceitando o intruso. Até o politizado Mano Brown, líder dos Racionais, o acolheu. Sua casa virou ponto de encontro para jogar vídeo game e ouvir rap.
A experiência parece ter sido realmente marcante. Ao falar da comunidade, Caio menciona o aumento da expectativa de vida, por causa da união das antigas facções do crime com o PCC (Primeiro Comando da Capital), que trouxe uma aparente paz à região. O crime ainda existe, mas "de forma velada". Segundo ele, a máxima da favela é "bandido bom é aquele que não machuca ninguém".
Como nunca acredito em nada que leio por aí, vou ficar apenas com as impressões dos que me disseram sobre a passagem do ator pelo bairro.
Humilhado? Ele não viu nada mesmo...
As Flores Malditas
por Robson Assis | tags Contos | 17.10.08 COMENTE!
- A decisão foi sua, o dinheiro era pra semana passada.
- Calma, mano, me dá mais uns dias, a gente é irmão, truta, por fav...
Dona Maria ouviu o disparo como se tivesse sido dentro da sua casa, mas não era. Três ruas acima, na boca do Tiziu, Sandrinho, seu filho, acabara de morrer na mão de traficantes para quem devia dinheiro do crack que havia tentado vender na última festinha da zona norte, com o pessoalzinho da USP. Não conseguiu vender nem metade. Seu vício o fez usar a festa toda, sem miséria. É como se colocassem um crocodilo para tomar conta de um açougue.
Naquele momento Maria, mãe/pai de família, sozinha, havia tirado a mente da TV por alguns instantes. Foi como se o tiro lhe dissesse que havia algo errado na ordem natural das coisas. Levantou, bebeu água, voltou a sentar na frente do aparelho e tentou se distrair. Certa aflição a rondava, não podia imaginar o que era. Assistia a cena do casal romântico, na época o Tarcísio e a Glória, mas nem eles a prendiam mais a atenção.
Percebe que seu maço estava acabando quando acende o primeiro cigarro, vício adquirido após a derrocada de Sandrinho, seu filho, nas drogas, pelas várias vezes que o buscou em lugares distantes, metido em encrencas com a polícia, ou largado após uma boa surra. Sempre se segurava para não ir, tinha dito a si mesma que jamais aceitaria uma coisa dessas em sua casa. Mas nunca tinha jeito, Dona Maria era mãe. E ao lembrar destes dias, de seu filho, da perdição, do primeiro dia em que dormiu chorando quando ele passou um tempo na recuperação paga pelos tios lá de Brasília, da raiva quando expulsou o menino de casa quando ele "noiou" o radinho da sala, ela surtou em silêncio, apertou uma das almofadas do sofá com força, como se fosse rasgá-la. Parou. Aumentou o volume da TV, talvez fosse isso.
Continuou a prestar atenção com certo desprendimento, muitas vezes sem ouvir o que diziam os atores. Parecia olhar mais o relógio do que a própria TV. Finalmente acabou o capítulo. Desligou a TV, arrumou objetos jogados na sala, pegou o boné que Sandrinho havia esquecido e levou ao quarto do rapaz, sentou em sua cama e chorou um pouco. Estava infeliz com a vida que levava, não entendia porque seu filho tinha de se envolver com gente errada, como conseguia se viciar daquele jeito tão triste em compostos químicos que não sabia nem de onde vinham.
Secou as lágrimas, foi até seu quarto. Em um silêncio quase mortal, arrumou a cama de casal que, após a morte de seu marido quatro anos atrás, dividia apenas com suas mágoas e os pensamentos de esperança que enchiam o quarto de uma luz que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Se deitou e em exatos seis minutos após a oração levantou e decidiu que não ia conseguir dormir. Talvez esperar o filho, e que dessa vez ele não tenha feito na errado de novo.
Voltou a sala, ligou a TV para desbaratinar o tempo que passava ali. Fumou os dois últimos cigarros do maço. O Jornal trazia algumas notícias de fazendas invadidas por sem-terra cansados de esperar a reforma agrária, crises econômicas quebrando bancos, nada que entendesse muito. Já passava das 11 da noite, seu filho não voltava. Talvez dormisse fora, como em outras ocasiões, mas o estado de alerta dizia que não era bem isso o que tinha acontecido.
Trancou a porta e foi até o bar sem perceber o movimento na travessa, ruas acima de sua casa. Pediu um Lucky Strike, "pra dar sorte", sonhava. Percebeu que os presentes a entreolhavam com desânimo e certo receio. Saiu sem entender nada.
Antes de cruzar o farol, percebeu o movimento. Caminhou pra ver o que era, tinha muita gente na rua e aquela sensação estranha ficava cada vez mais forte com os passos em direção ao tumulto. Aqueles que fechavam a roda sobre o ocorrido olharam pra trás e deram espaço à ela. Todos saíam aos poucos quando viam Dona Maria se aproximando, até que ela conseguiu ver o corpo de seu filho com um tiro no peito. Ajoelhou, colocou as mãos no rosto e finalmente desabou em prantos.
No outro dia, Pilé, um dos meninos envolvidos com o tráfico da região em que morava estava no enterro. Era 'amigo' do finado e sentiu que devia estar lá para presenciar os últimos momentos do corpo do rapaz. Comprou uma rosa na entrada do cemitério e entrou com ela. Parecia mesmo triste, mas conformado e entendedor da situação. Dona Maria o conhecia, sabia de seu envolvimento na boca de fumo. Viu ele de longe, mas não conseguia dizer qualquer palavra desde que acordou.
Ao lado do caixão, Dona Maria ouviu o padre encaminhar a alma de seu filho para os céus. E viu os parentes e conhecidos jogarem as flores sobre seu corpo.
Quando Pilé se aproximou, Dona Maria pegou a flor de sua mão e disse não querer que seu filho subisse ao céu com lembranças dos dias negros que passou neste universo. Pilé ouviu e deu as costas num êxtase momentaneo que o dividia entre a raiva e o discernimento das palavras que aquela mulher acabara de lhe dizer. Dona Maria pisou e viu as pétalas se desfazerem na terra daquele lugar que voltaria anos depois apenas para lembrar seu filho nas datas comemorativas que mais gostava quando pequeno, como seu aniversário, a Páscoa e o Natal.
Dona Maria era mãe. E mais uma vez - ou pela última vez - livrou Sandrinho das flores malditas.
- Calma, mano, me dá mais uns dias, a gente é irmão, truta, por fav...
Dona Maria ouviu o disparo como se tivesse sido dentro da sua casa, mas não era. Três ruas acima, na boca do Tiziu, Sandrinho, seu filho, acabara de morrer na mão de traficantes para quem devia dinheiro do crack que havia tentado vender na última festinha da zona norte, com o pessoalzinho da USP. Não conseguiu vender nem metade. Seu vício o fez usar a festa toda, sem miséria. É como se colocassem um crocodilo para tomar conta de um açougue.
Naquele momento Maria, mãe/pai de família, sozinha, havia tirado a mente da TV por alguns instantes. Foi como se o tiro lhe dissesse que havia algo errado na ordem natural das coisas. Levantou, bebeu água, voltou a sentar na frente do aparelho e tentou se distrair. Certa aflição a rondava, não podia imaginar o que era. Assistia a cena do casal romântico, na época o Tarcísio e a Glória, mas nem eles a prendiam mais a atenção.
Percebe que seu maço estava acabando quando acende o primeiro cigarro, vício adquirido após a derrocada de Sandrinho, seu filho, nas drogas, pelas várias vezes que o buscou em lugares distantes, metido em encrencas com a polícia, ou largado após uma boa surra. Sempre se segurava para não ir, tinha dito a si mesma que jamais aceitaria uma coisa dessas em sua casa. Mas nunca tinha jeito, Dona Maria era mãe. E ao lembrar destes dias, de seu filho, da perdição, do primeiro dia em que dormiu chorando quando ele passou um tempo na recuperação paga pelos tios lá de Brasília, da raiva quando expulsou o menino de casa quando ele "noiou" o radinho da sala, ela surtou em silêncio, apertou uma das almofadas do sofá com força, como se fosse rasgá-la. Parou. Aumentou o volume da TV, talvez fosse isso.
Continuou a prestar atenção com certo desprendimento, muitas vezes sem ouvir o que diziam os atores. Parecia olhar mais o relógio do que a própria TV. Finalmente acabou o capítulo. Desligou a TV, arrumou objetos jogados na sala, pegou o boné que Sandrinho havia esquecido e levou ao quarto do rapaz, sentou em sua cama e chorou um pouco. Estava infeliz com a vida que levava, não entendia porque seu filho tinha de se envolver com gente errada, como conseguia se viciar daquele jeito tão triste em compostos químicos que não sabia nem de onde vinham.
Secou as lágrimas, foi até seu quarto. Em um silêncio quase mortal, arrumou a cama de casal que, após a morte de seu marido quatro anos atrás, dividia apenas com suas mágoas e os pensamentos de esperança que enchiam o quarto de uma luz que não existia em nenhum outro lugar do mundo. Se deitou e em exatos seis minutos após a oração levantou e decidiu que não ia conseguir dormir. Talvez esperar o filho, e que dessa vez ele não tenha feito na errado de novo.
Voltou a sala, ligou a TV para desbaratinar o tempo que passava ali. Fumou os dois últimos cigarros do maço. O Jornal trazia algumas notícias de fazendas invadidas por sem-terra cansados de esperar a reforma agrária, crises econômicas quebrando bancos, nada que entendesse muito. Já passava das 11 da noite, seu filho não voltava. Talvez dormisse fora, como em outras ocasiões, mas o estado de alerta dizia que não era bem isso o que tinha acontecido.
Trancou a porta e foi até o bar sem perceber o movimento na travessa, ruas acima de sua casa. Pediu um Lucky Strike, "pra dar sorte", sonhava. Percebeu que os presentes a entreolhavam com desânimo e certo receio. Saiu sem entender nada.
Antes de cruzar o farol, percebeu o movimento. Caminhou pra ver o que era, tinha muita gente na rua e aquela sensação estranha ficava cada vez mais forte com os passos em direção ao tumulto. Aqueles que fechavam a roda sobre o ocorrido olharam pra trás e deram espaço à ela. Todos saíam aos poucos quando viam Dona Maria se aproximando, até que ela conseguiu ver o corpo de seu filho com um tiro no peito. Ajoelhou, colocou as mãos no rosto e finalmente desabou em prantos.
No outro dia, Pilé, um dos meninos envolvidos com o tráfico da região em que morava estava no enterro. Era 'amigo' do finado e sentiu que devia estar lá para presenciar os últimos momentos do corpo do rapaz. Comprou uma rosa na entrada do cemitério e entrou com ela. Parecia mesmo triste, mas conformado e entendedor da situação. Dona Maria o conhecia, sabia de seu envolvimento na boca de fumo. Viu ele de longe, mas não conseguia dizer qualquer palavra desde que acordou.
Ao lado do caixão, Dona Maria ouviu o padre encaminhar a alma de seu filho para os céus. E viu os parentes e conhecidos jogarem as flores sobre seu corpo.
Quando Pilé se aproximou, Dona Maria pegou a flor de sua mão e disse não querer que seu filho subisse ao céu com lembranças dos dias negros que passou neste universo. Pilé ouviu e deu as costas num êxtase momentaneo que o dividia entre a raiva e o discernimento das palavras que aquela mulher acabara de lhe dizer. Dona Maria pisou e viu as pétalas se desfazerem na terra daquele lugar que voltaria anos depois apenas para lembrar seu filho nas datas comemorativas que mais gostava quando pequeno, como seu aniversário, a Páscoa e o Natal.
Dona Maria era mãe. E mais uma vez - ou pela última vez - livrou Sandrinho das flores malditas.
A Nova Ordem do Caos
por Robson Assis | tags Contos | 15.10.08 COMENTE!
ou "O dia em que João saiu de casa com uma 12 no punho"
Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez? Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso, descia.
Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajunta que fazia homens inocentes morrerem em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veia do rosto saltavam e pareciam linhas de trem que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas de sua parte.
Mais alguns metros, refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não ver mais a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando algo que parecia funk carioca. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.
Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas e entradas escuras da favela.
Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. Para o azar do que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado.
Deu um chute na cara do corpo do policial que carregava e prosseguiu.
Inventava orações hereges durante todo esse trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".
Faltavam 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.
Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de 8 viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone pede para que se entregue. Ele pára. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes.
Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma doze na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão.
O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, que servia de escudo. Arrastou consigo o corpo que trazia. Por algum motivo tinha de levá-lo. Algo parecido com uma gosma já ficava no chão, de tanto arrastar aquela cabeça.
A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.
Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.
Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito e um corpo que definhava em outra cova num cemitério da periferia paulistana. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltavam nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.
No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram.
Nosso João só queria justiça para os seus.
"E João não conseguiu o que queria quando desceu o Jd. Brasília pra com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente pra por um fim em toda essa gente que só faz sofrer."
"Pesadelo do Sistema não tem medo da morte"
Racionais MC's
Racionais MC's
Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez? Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso, descia.
Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajunta que fazia homens inocentes morrerem em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veia do rosto saltavam e pareciam linhas de trem que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas de sua parte.
Mais alguns metros, refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não ver mais a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando algo que parecia funk carioca. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.
Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas e entradas escuras da favela.
Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. Para o azar do que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado.
Deu um chute na cara do corpo do policial que carregava e prosseguiu.
Inventava orações hereges durante todo esse trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".
Faltavam 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.
Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de 8 viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone pede para que se entregue. Ele pára. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes.
Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma doze na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão.
O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, que servia de escudo. Arrastou consigo o corpo que trazia. Por algum motivo tinha de levá-lo. Algo parecido com uma gosma já ficava no chão, de tanto arrastar aquela cabeça.
A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.
Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.
Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito e um corpo que definhava em outra cova num cemitério da periferia paulistana. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltavam nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.
No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram.
Nosso João só queria justiça para os seus.
"E João não conseguiu o que queria quando desceu o Jd. Brasília pra com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente pra por um fim em toda essa gente que só faz sofrer."
Western Day
por Robson Assis | tags Contos | COMENTE!
Ele descia a rua a milhão. Estava impregnado em seus olhos, claro como as brasas do inferno. A vingança era sua única sede. O ódio sua única verdade. Caminhava sobre as luzes dos postes e pessoas que devagar abriam suas janelas para ver o que acontecia lá fora. Aquele barulho, aquela agitação. Quem será o fulano dessa vez? Carregava consigo uma arma de pesado calibre numa das mãos, no outro, o corpo de um policial já desfigurado de tanto apanhar. Ele não sabia onde tudo aquilo iria acabar, talvez ele nem quisesse que tudo aquilo tivesse fim. Descia, acelerado, solitário e raivoso, descia.
Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajunta que fazia homens inocentes morrerem em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veia do rosto saltavam e pareciam linhas de trem que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas de sua parte.
Mais alguns metros, refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não ver mais a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando algo que parecia funk carioca. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.
Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas e entradas escuras da favela.
Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. Para o azar do que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado.
Deu um chute na cara do corpo do policial que carregava e prosseguiu.
Inventava orações hereges durante todo esse trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".
Faltavam 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.
Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de 8 viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone pede para que se entregue. Ele pára. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes.
Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma dose na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão.
O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, que servia de escudo. Arrastou consigo o corpo que trazia. Por algum motivo tinha de levá-lo. Algo parecido com uma gosma já ficava no chão, de tanto arrastar aquela cabeça.
A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.
Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.
Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltavam nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.
No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram.
Nosso João só queria justiça para os seus.
"E João não conseguiu o que queria quando desceu o Jd. Brasília pra com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente pra por um fim em toda essa gente que só faz sofrer."
Cansado da polícia, cansado da ordem que os homens de farda colocavam no seu bairro, a ordem fajunta que fazia homens inocentes morrerem em detrimento de um grupo seleto de traficantes que sustentavam estatísticas como a mortalidade infantil e os índices de criminalidade. Ao pensar nisto, suas veia do rosto saltavam e pareciam linhas de trem que cortavam sua face de ponta a ponta. Suor, sangue, e dessa vez sem lágrimas de sua parte.
Mais alguns metros, refletiu sobre o que estava fazendo. Parou, encostou num carro, largou a arma de canto. Esqueceu por alguns momentos o motivo de toda a cena miserável que lhe rodeava. Pôs a mão no rosto, para não ver mais a rua, nem a enxurrada de água que descia junto à guia. Ouviu barulho de carros, música. Quatro garotos desciam devagar com um Fusca, tocando algo que parecia funk carioca. Colocou a mão sobre os ouvidos, não queria voltar. Olhou para a entrada estreita da favela, onde tinha parado. Outros garotos fumavam algo escondido num canto e sussurravam com medo. Largou seus braços, se livrou da água que batia violentamente contra sua face.
Abordou o Fusca. Os garotos estranharam, mas pararam o carro. Um deles apontou uma faca. Quando viu o cano duplo, deixou cair o artefato entre os dedos. Abriu a porta de um dos lados. Disse um simples e furioso: Saiam! Os quatro, possivelmente menores de idade corriam como ratos pelas frestas e entradas escuras da favela.
Olhou por dentro do carro. Viu que o som era de última geração, desses mais caros do que muitos daqueles barracos de palafita que estava acostumado a ver. Deu o primeiro tiro. O capô do carro, aberto, também condenava um alto-falante potente, destruído pelo segundo tiro. Soltou o freio de mão e deixou o carro descer. Para o azar do que premeditava - ver o dito descer até o fim da rua, passar o cruzamento e ter um fim trágico - o automóvel desalinhado bateu no terceiro poste, após passar raspando um Golf estacionado na frente de um bar fechado.
Deu um chute na cara do corpo do policial que carregava e prosseguiu.
Inventava orações hereges durante todo esse trajeto: "Deus dos fortes e justos, me dá alívio na morte de meus inimigos, me dá esperança na tragédia anunciada daqueles que querem o mal da humanidade. Me curvo perante sua bondade e apelo para que não tenha pena de meus adversários e os deixe padecer no conforto do esquecimento eterno. Pela morte cruel, indigna e pela putrefação das almas destes idiotas, Amém".
Faltavam 300 metros para acabar a ladeira, viu uma travessa escura, a qual já havia morado quando menor, com seus pais. O lugar parecia uma ilha perdida no meio do inferno. Ali até gatos e cachorros viviam em harmonia, velhos sentavam na rua até tarde. Viu uma criança que brincava na garagem de casa, despreocupada, sem pensar em maldades alheias, como se estivesse vigiada por uma equipe de seguranças treinados pela CIA. E o fato de haver gente no mundo preocupada com maldade e cercada 24 horas diárias por homens armados e vidros blindados o trazia de volta à sua descomunal condição de monstro.
Ao olhar pra frente, o pesadelo se fez real. Cerca de 8 viaturas fechavam a rua que tinha apenas aquela saída. As travessas e ruazinhas não levavam ao mesmo local. Grande parte delas era sem saída. Um policial fala em um megafone pede para que se entregue. Ele pára. Olha pra trás, vê algumas luzes acesas, janelas entreabertas e olhos escondidos na escuridão daquela noite chuvosa. Olha para frente e larga o corpo por alguns instantes.
Correu para trás de um carro. Alguns policiais que já corriam na frente foram atigidos por seus primeiros tiros. Os outros se seguravam atrás das portas de suas viaturas, com receio do maluco que tinha uma dose na mão. Abriu pelo quebra-vento aquele Gol 91, desvirou o volante, respirou. Tirou da cintura a Automática que havia levado. Soltou o freio de mão.
O carro descia fielmente alinhado, como esperava. Ele, atrás, corria, gritava e atirava nos policiais que revidavam sobre o Gol, que servia de escudo. Arrastou consigo o corpo que trazia. Por algum motivo tinha de levá-lo. Algo parecido com uma gosma já ficava no chão, de tanto arrastar aquela cabeça.
A essa hora, ele já devia saber no que havia se metido. Foi quando tomou um tiro no ombro e provou seu sangue pela primeira vez. Do cartucho de sua automática, saíram os tiros que derrubaram outros três policiais. As baixas da corporação já eram tantas que ele já nem sentia seu tiro, satisfeito do que estava fazendo, gargalhava sob um céu negro e pouco poético da periferia de São Paulo.
Um homem cansado não consegue esperar por um outro dia de sossego. Fizeram de sua vida uma merda, o caos declarado, a guerra fria, ninguém se mexe, ninguém fala, ninguém se levanta. Era só mais um dia comum para ele. Mas naquele dia o senso comum lhe disse que seus ossos não suportariam sequer mais um dia sem poder provar a si mesmo a fragilidade do mundo e a força dos humanos comuns.
Seu pesadelo terminou com 16 tiros no peito. Os jornais do dia seguinte o entregavam como maluco. Alguns faziam referências a Serial Killers, filmes sobre psicopatas. Michael Meyers, Conspiração, Sociopatia, palavras que não faltavam nos periódicos daquela manhã cinzenta. Houve páginas de dedicação aos heróis que salvaram o mundo daquele terrorista e homenagem com presença do prefeito da cidade, cavalaria e salva de tiros.
No outro dia de noite a biqueira pegava fogo, moleques continuavam a esmolar e furtar bolsas de tiazinhas para sustentar seus vícios, fogos de artifício durante o dia todo diziam que a quebrada tava fervendo, o estoque de entorpecentes na boca de fumo estava cheio. O contra-cheque da PM estava pronto, a parte deles feita. Policiais cretinos rezavam de noite para que ninguém mais se revoltavasse contra a ordem que eles mesmos estabeleceram.
Nosso João só queria justiça para os seus.
"E João não conseguiu o que queria quando desceu o Jd. Brasília pra com o diabo ter. Ele queria era falar pro presidente pra por um fim em toda essa gente que só faz sofrer."
Haikai Music I
por Robson Assis | tags Letras e Poesia | 14.10.08 COMENTE!
Às vezes é preciso estar só
Para lembrar de que estamos
Largados no universo
Livres como o verso
E o mundo todo temos na palma da mão.
Às vezes é preciso esquecer a impunidade
Para deixar as crianças brincarem até tarde
E fingir simplismo em meio ao caos
Desenhar harmonia e linhas de piano
Em versões punk de Strauss.
Para lembrar de que estamos
Largados no universo
Livres como o verso
E o mundo todo temos na palma da mão.
Às vezes é preciso esquecer a impunidade
Para deixar as crianças brincarem até tarde
E fingir simplismo em meio ao caos
Desenhar harmonia e linhas de piano
Em versões punk de Strauss.
Não queremos saber
por Robson Assis | tags Crítica | 8.10.08 COMENTE!
Houve um tempo em que a falta de entendimento de nossa situação foi a causa principal de nossa humilhação. Hoje somos pessoas que aceitam o preconceito, os tapas na cara, a zombaria dos ricos e ainda assim levamos a vida sorrindo e trabalhando, para não me aprofundar em outros gerúndios piores. A civilização inteira é montada sobre esse tipo de gente que somos nós. Que durante a semana recebe ordens, gritos, abaixa a cabeça e no fim de semana bate a laje de casa com os amigos felizes da vida por ter sobrado 30 reais do salário. Enquanto o outro, o que dá as ordens, serve-se de um capuccino italiano, em sua poltrona sueca em couro alemão, enquanto assiste na TV a cabo um documentário sobre a pobreza em Angola. Não há esperança. E sim, omissão.
Assinar:
Postagens (Atom)